Contrariando a era do ruído: petropolitano, facilitador de estudos budistas, fala sobre o silêncio e a prática de meditação
“Um dos celulares apitou ao receber uma mensagem, mas ninguém cogitou abri-la naquele momento. Preenchemos o silêncio com a nossa presença.”¹ Durante quantos minutos ou horas do dia você costuma ficar em silêncio? Lucas Machado, petropolitano, praticante de meditação e facilitador no Centro de Estudos Budistas Bodisatva, falou sobre essa palavra de luxo, o silêncio, num bate-papo que remeteu a uma espécie de meditação falada.
Quando se fala em meditação, muitas pessoas acreditam que é uma prática distante da realidade. Algo muito difícil de ser alcançado. Eu diria que, para muitos, é ‘coisa de monge’, para alguém já iluminado. Essa visão parece estar relacionada à dificuldade que, de alguma maneira, muitos enfrentam hoje em dia: ficar em silêncio. Então, primeiramente, gostaria de perguntar a você, que é praticante de meditação, o que é o silêncio?
“O silêncio é a verdadeira base da nossa mente, da nossa consciência. Quando repousamos o corpo e a mente, ficando em silêncio, percebemos que até mesmo o som não pode ser ouvido sem que haja essa pausa. Os pensamentos não podem ser observados sem o silêncio. Até mesmo as sensações do corpo e sua movimentação de energia não podem ser observadas sem ele. O cultivo do silêncio e a prática da meditação são a porta de entrada para o nosso mundo interno.”
Com a velocidade de informações a que somos submetidos, principalmente depois do advento das redes sociais, parece quase uma afronta sentar-se por alguns minutos e ficar em silêncio. No entanto, nunca foi tão importante essa familiarização com o corpo e mente, justamente porque o ser humano parece viver num estado acelerado e em busca de algo externo que não o preenche, pelo menos não internamente. E parece que muitos já estão ponderando sobre essa busca desenfreada e retomando o controle da própria vida. Pergunto ao petropolitano se a meditação é um instrumento para retomar esse controle.
“Sim, a meditação pode ser considerada uma forma de retomarmos o controle das nossas vidas, porém de uma forma curiosa. Explico: durante a prática não fazemos nada, apenas sentamos, relaxamos e focamos na respiração. Ao soltarmos o ar, nós relaxamos e contemplamos o corpo, a mente, os pensamentos e as emoções se manifestando, além da movimentação de energia e suas sensações. Ao abdicar de responder imediatamente às coisas, nós criamos mais espaço para conduzir a nossa vida com lucidez. Então, a prática da meditação, de certo modo, é uma prática da não ação. É uma prática através da qual não respondemos mais aos nossos impulsos habituais de forma tão imediata. Ela é uma ação, mas é uma ação da não ação. Através dela nós paramos, observamos e criamos espaço para agir de maneira diferente às circunstâncias da vida.”
Estudos recentes mostram que o cérebro emite ondas alfa em vez de beta durante a meditação. As ondas beta são emitidas quando se está acordado. Portanto, estaríamos quase que num entre-lugar entre o sono e o estado desperto. Questionado sobre isso, Lucas relembra os bardos, estados transitórios de consciência. “No Budismo Tibetano, nós temos os ensinamentos dos bardos, ou seja, estados transitórios de consciência. Quando estamos acordados, a nossa consciência opera através dos cinco sentidos e da nossa formação mental habitual. Nós temos a capacidade de reconhecer tudo isso. Essa capacidade é chamada de lucidez. Portanto, perceba: quando você dorme, os seus cinco sentidos se voltam para dentro. Em determinado momento, também, a sua formação mental vai silenciar. Ainda assim, um certo campo de consciência sutil, inconsciente, lúdico e onírico continua operando no mundo dos sonhos. No entanto, mesmo nesse mundo ausente de um corpo físico, no qual a mente sutil produz estados de consciência – o que chamamos de bardo do sonho – é possível haver uma lucidez da experiência similar a quando estamos acordados. Assim, a mente não opera apenas atrelada diretamente aos cinco sentidos físicos. Mesmo que eles estejam silenciados, como no estado do sono, a consciência continua produzindo as suas imagens. Existe esse reconhecimento cognoscente que nós chamamos de lucidez.”, explica.
Segundo Lucas, o grande objetivo da meditação na tradição budista é libertar o ser humano dos seus automatismos, responsividades e hábitos mentais nocivos que contribuem para ações repetitivas diante das circunstâncias da vida. É criar espaço para deixar para trás esses comportamentos arraigados. “A meditação é uma libertação, ela permite que o ser humano desenvolva uma qualidade de atenção e lucidez diante de si mesmo e ao seu mundo interno. O lugar ideal para essa prática é um local relativamente calmo, seja em casa ou no trabalho, onde você se sinta confortável.”
Algumas pessoas usam o termo ‘meditar’ para fazer referência ao verbo pensar. Isto é, ‘vou meditar sobre isso’ seria um ‘vou pensar a respeito.’ A meditação é pensar a respeito ou é não pensar, mas deixar fluir os pensamentos?
“O termo meditação é um termo ocidental. No oriente, ele não é usado da mesma maneira. Na Ásia, seria algo como nos familiarizarmos com a nossa própria consciência, com o nosso corpo e com a maneira como a nossa consciência se manifesta através dos pensamentos, emoções, ações habituais e assim por diante. A ideia da manifestação como ideia de reflexão é uma ideia ocidental, diferente daquela existente na tradição budista, na qual ela é uma familiarização com aquilo que somos e manifestamos.”
Perdi o foco e agora?
Quem medita há algum tempo ou já tentou, sabe que durante a prática pensamentos vêm e vão. Pergunto ao praticante como estabelecer um foco para que isso não comprometa os minutos de interiorização. “Estabelecer um foco durante a prática é extremamente necessário durante a meditação. O foco mais natural é a respiração. Nós observamos se estamos respirando de forma curta ou longa. Estabelecemos uma respiração abdominal e relaxamos o corpo todo ao soltarmos o ar. Com isso, progressivamente, geramos uma maior estabilidade de corpo, mente e movimentação de energia. Sempre que a mente se distrai nós voltamos a nossa atenção para esse foco natural de corpo, mente, energia e respiração.”, diz.
Ainda segundo Lucas, não existe um tempo indicado para a prática da meditação, mas é recomendado que a pessoa comece com tempos curtos e vá aumentando gradativamente o tempo de sua prática. “Por exemplo, cinco minutos, depois mais cinco minutos e mais cinco minutos. Se a pessoa se propõe a meditar por cinco minutos que ela se atenha a isso. De modo que ela relaxe durante a prática pelo tempo proposto. Não é necessário, a princípio, tempos muito longos. Ela pode ir aumentando conforme sua experiência.”
Pergunto ao estudioso o que a meditação pode fazer pelas pessoas no mundo contemporâneo. “Acredito que a meditação pode nos ajudar a transformar a nossa consciência e contribuir para que sejamos mais respeitosos em relação aos outros. Podemos ouvir com mais calma o que as outras pessoas têm a nos dizer. A meditação também é um caminho para tornar a nossa mente mais flexível. Uma prática que contribui, de modo mais amplo, para o cultivo de uma cultura de paz em meio ao mundo.”
Questionado sobre os livros que indica para quem deseja iniciar na prática, o petropolitano é enfático ao recomendar duas obras: “Recomendo muito Meditando a vida, do mestre lama Padma Samten. Ele é o nosso professor do Centro de Estudos Budistas Bodisatva. É brasileiro, nomeado lama do budismo tibetano pelo mestre Chagdud Tulku Rinpoche, primeiro Rinpoche tibetano a ensinar no Brasil. Esse livro traz a meditação para um contexto da transformação na vida prática, é uma excelente introdução à filosofia budista e também ao propósito da prática da meditação. Outro livro que gosto muito é o de uma monja budista americana: Quando tudo se desfaz. O nome dela é Pema Chödrön. Esse livro é extraordinário, porque nos ensina a usar melhor as nossas emoções em situações difíceis. Também é uma ótima introdução à prática da meditação e aos seus objetivos, ligados diretamente à vida prática e a como nós lidamos com as nossas emoções em diferentes circunstâncias.”
¹ KAGGE, Erling. Silêncio: na era do ruído. Objetiva, 2017.