Conversa entre Leonardo Boff, ecoteólogo e colunista da Tribuna de Petrópolis, e Eliana Alves Cruz marca o primeiro dia do Flipetrópolis

Por Aghata Paredes

O primeiro dia do Festival Literário Internacional de Petrópolis, o Flipetrópolis, movimentou a cena cultural da cidade. O evento, que acontece até domingo (05), no Palácio de Cristal, com entrada gratuita, reuniu figuras importantes como o presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luís Roberto Barroso, o desembargador Gustavo Grandinetti, o jornalista Jamil Chade, o imortal Antônio Torres, a escritora Taiane Santi Martins, vencedora do Prêmio Sesc de Literatura 2022, e a escritora ruandesa Scholastique Mukasonga. Um dos destaques da noite foi a conversa entre o ecoteólogo Leonardo Boff, também colunista da Tribuna de Petrópolis, e a jornalista Eliana Alves Cruz. Na ocasião, o auditório 1 ficou lotado. 

Eliana Alves Cruz destacou a importância de resgatar os feitos de Leonardo Boff para as novas gerações, enaltecendo sua coragem, sua fé inabalável e sua vasta produção literária, composta por 127 livros. “Para as novas gerações acho que precisamos, sim, resgatar os títulos e os feitos de Leonardo Boff. Ele é um ícone por conta da coragem, da sua fé inabalável, por conta dos 127 livros escritos e por ser um farol para um país que, volta e meia, tem um flerte com o autoritarismo, com a crueldade do silenciamento, com coisas que a gente precisa definitivamente superar, e Leonardo sempre foi uma voz insurgente contra tudo isso. Sempre foi!”, destacou, ao apresentar o escritor ao público.

Foto: Aghata Paredes/Redação Tribuna de Petrópolis

Durante a conversa, Boff compartilhou experiências marcantes de sua trajetória, contou a respeito de sua experiência de silenciamento, que levou Joseph Ratzinger a conduzir, na Igreja Católica Romana, um processo que impôs a ele, em 1985, o chamado “silêncio obsequioso” durante um ano, e fez com que ele fosse deposto de todas as funções do magistério no campo religioso. Com a pressão mundial sobre o Vaticano, a pena foi suspensa em 1986 e Boff recuperou algumas funções, mas continuou enfrentando desafios. “Na primeira vez foi uma humilhação e eu aceitei o silêncio obsequioso, agora já estava com mais de 50 anos, não ia sair do Brasil, aprender um novo idioma, e disse: não vou nem à Coreia do Sul nem para as Filipinas. Me disseram que eu tinha que decidir até meio-dia, teria que deixar a ordem franciscana. Disse que já estava decidido, troco de trincheira mas não troco de luta”, contou à plateia, ao lembrar do que viveu à época.

O teólogo também destacou a importância da Teologia da Libertação, compartilhando com o público sua experiência em Manaus, quando se viu diante de uma realidade que não podia ser apreendida pela teologia que aprendeu na Europa, e que era inadequada à realidade latino-americana. “Como pregar a ressurreição de Cristo aos povos indígenas que estão sendo mortos e exterminados? Minha teologia, por melhor que fosse, não era adequada a eles”, disse ao público. Boff também presenteou a plateia com lembranças especiais de Papas como João Paulo II, Bento XVI e Francisco, lembrou do enfrentamento à ditadura militar e os mais de 20 anos em que trabalhou ao lado de sua companheira, Márcia Miranda, no “lixão” de Petrópolis. 

Durante a conversa, Boff ressaltou a importância de enxergar a Terra de outra maneira, lembrando uma de suas obras mais relevantes, especialmente às novas gerações. “Se nós falamos da Terra como solo, podemos comprar, vender, cavar, fazer o que quiser; se falo ‘Mãe Terra’, eu cuido, eu amo, eu defendo. “O livro “A nova visão do universo” fala sobre essa ecologia. Ganhamos uma medalha de ouro nos Estados Unidos, trabalhamos durante 13 anos nessa obra. É um livro para fazer a cabeça. Inclusive, dei 10 aulas a respeito no Instituto Conhecimento Liberta (ICL), e vendemos mais de 40 mil exemplares.”

Foto: Aghata Paredes/Redação Tribuna de Petrópolis

Logo depois, Eliana Alves Cruz fez a leitura de um trecho do livro. “Abri aqui numa página a esmo, e quem me conhece sabe o porquê eu fiquei emocionada. Meu pai é um homem do candomblé. Vi um católico herege [Leonardo Boff], conversando com um ogã de Ogum sobre as coisas do mundo, se entendendo e se respeitando – como nosso país foi vocacionado para ser. Muito obrigada por isso”, disse Eliana Alves Cruz, emocionada.

“A Fonte Originária da qual tudo brota. Os cosmólogos, aqueles cientistas que já há séculos estudam a história do universo, nos transmitem a seguinte imagem: antes que houvesse tudo que existe havia algo misterioso e indecifrável que denominaram vácuo quântico. Na verdade, ele não tem nada de vácuo, porque contém todas as possibilidades de seres que existem e possam existir. Ele é antes de tudo que existe. Alguns o chamaram de fonte originária de todos os seres; outros, de abismo, alimentador de tudo o que existe. Apresentamos a imagem de um oceano imenso, sem margens, borbulhante e reluzente. De todas as partes sobem luzinhas coloridas que logo em seguida voltam a desaparecer. Isso não para em nenhum momento. Dessa fonte originária brotam todas as coisas existentes. Essas luzinhas são coisas que nascem, vivem um pouquinho e depois, como que morrem, e voltam para o seio da fonte. É a água.”

Trecho da obra “A nova visão do universo”, de Leonardo Boff

Ao final da conversa com a jornalista, Boff ressaltou a importância da espiritualidade e do amor incondicional na superação da crise espiritual da sociedade contemporânea. “Quase metade dos livros que escrevi são sobre espiritualidade. Acho que a grande crise de hoje é a crise do espírito, onde habita Deus, onde nós colocamos as questões mais fundamentais. De onde viemos, o que estamos fazendo nesse mundo, o que podemos esperar depois dessa vida, como preservar a Casa Comum, e ele se revela na forma de solidariedade, compaixão, amor incondicional, gratidão e cuidado de todas as coisas, porque todos nós somos irmãos e irmãs. Isso é a obra do espírito, é da essência do ser humano, não é uma derivação da religião. A religião pode reforçar a espiritualidade. Eu diria mais, todas as religiões nasceram dessa espiritualidade, são como canalizações diferentes dessa fonte originária que está dentro de cada um de nós. É da nossa essência sermos seres espirituais. Quem decifrou o código genético, James Watson, certa vez, disse: sou ateu e me transformei em discípulo de São Paulo, porque ele fez o maior elogio ao amor, e eu, como cientista, decifrando o código genético, aqueles tijolinhos que constroem a vida, me dei conta de que o amor é a coisa mais essencial da vida humana, está escrito na nossa essência, é o amor.”, concluiu Boff, emocionado.

Mais sobre Leonardo Boff

Professor de Teologia Sistemática no Instituto Franciscano de Petrópolis por mais de duas décadas e, posteriormente, de Ética, Filosofia da Religião e de Ecologia Filosófica na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), além de ter sido professor visitante em diversas universidades estrangeiras, Leonardo Boff foi agraciado com diversos prêmios no Brasil e no exterior. É Doutor Honoris Causa em Política pela Universidade de Turim (Itália), em Teologia pela Universidade de Lund (Suécia), entre outras. Em 1995, recebeu o Prêmio Sérgio Buarque de Holanda como a obra “Ecologia-Grito de Guerra, Grito dos Pobres” (1995). Recebeu o título de Professor Honorário pela Universidade de São Carlos, na Guatemala, e pela Universidade de Cuenca, no Equador. Em 2001 foi agraciado com o Prêmio Nobel Alternativo, em Estocolmo, o Right Livelihood Award. Ainda hoje, aos 85 anos, Boff é reconhecido pela sua luta em favor dos fracos, oprimidos e marginalizados.

Sobre o Flipetrópolis

O 1º Festival Literário Internacional de Petrópolis recebe diversos escritores locais, nacionais e internacionais, movimentando diferentes cenas da produção literária, além de fomentar a educação, o acesso à arte – em suas mais variadas formas – e a inclusão. O evento, que começou nessa quarta-feira (1º), segue até domingo (05), com entrada gratuita e uma vasta programação para todas as idades. Para conferir a programação completa acesse o site oficial do evento.

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