Crise terminal da república?
Na famosa peça Hamlet, de Shakespeare, uma frase se tornou muito citada mundo afora: “Há algo de podre no Reino da Dinamarca”. A Dinamarca hoje vai bem obrigada. E é bem mais res publicana do que o Brasil no trato e respeito à coisa pública. Infelizmente, o debate por aqui ainda não se deu conta de que uma monarquia pode ser mais res publicana do que uma república strictu sensu. No Patropi, ela exala mau cheiro. O saldo de 130 anos desta malfadada república, quase o dobro do tempo que durou o Império, foi exatamente o seguinte: corrupção sistêmica, políticos que não nos representam e desigualdade sócio-econômica quase campeã mundial.
E qual teria sido o saldo do Império ao findar em 1889? Certamente, não havia corrupção sistêmica. Numa entrevista, o historiador Marco Villa negou, com convicção, que fosse tudo igual a hoje. Segundo ele, houve dois casos de corrupção exemplarmente punidos. Quanto à representatividade e seriedade dos políticos, cabe lembrar o veredito de Ruy Barbosa, em 1915, de que o Parlamento do Império era uma escola de Estadistas e que o Congresso da república era um balcão de negócios. (E assim continua!) Ainda que a lisura das eleições à época deixasse a desejar, havia a possibilidade constitucional de dissolução da Câmara com convocação imediata de novas eleições, o que certamente refreava em muito os instintos predadores dos maus políticos.
Quanto à desigualdade, os tempos do Império foram a única vez em que se levou a sério em nossa história a luta pela sua redução significativa ao longo de décadas. De fato, não é coisa que se resolva da noite para o dia. Além de muitas alforrias, a Lei do Ventre Livre, de 1871, teve impactos positivos ao criar um Fundo para compra de alforrias e ainda dava aos escravos o direito de abrir contas de poupança na Caixa, que lhes permitiram comprar inclusive suas alforrias. Houve, dessa forma, uma redução do número de escravos de 1,5 milhão, em 1872, para 700 mil, em 1887, menos de um ano antes da Lei Áurea. E foi assim que se pôs fim ao trabalho não remunerado no País. Este período deu um grande salto em direção à maior igualdade entre brasileiros.
Mas a ficha suja da república vem desde seu início. Ou melhor, antes dele. Um dos fundadores, em 1870, e depois presidente do Partido Republicano Paulista, Francisco Glycerio, não poderia ter sido mais explícito: “Nosso objetivo é fundar a república, não libertar os escravos”. Na verdade, lutava por manter a desigualdade. A essa visão se somou depois a doutrina do embran-quecimento acobertado pela defesa da eugenia e o descaso (até hoje!) pela escola pública de qualidade, fator decisivo na luta pela igualdade a longo prazo.
E como estão as instituições ditas republicanas nos dias de hoje? Nada bem. Quando um ministro do STF diz, diante das câmeras de TV, que um de seus colegas era motivo de vergonha para aquela Corte, ele confirma o sentimento popular negativo em relação ao STF. No estado do Rio de Janeiro, o Tribunal de Contas teve seis de seus sete membros presos por corrupção. Isso diz muito sobre os problemas de corrupção no Judiciário denunciados pela população.
Quanto ao poder executivo federal, ele vem sendo motivo de sistemática desilusão para a população. Desde 1985, tivemos presidentes em que a luta contra a corrupção era a grande bandeira. Collor, contra os marajás, que deu em impeachment; depois Lula, na denúncia das maracutaias, acabou tornando a corrupção sistêmica com o mensalão e o petrolão. Pior: os companheiros enfiaram a mão até em fundos de pensão dos trabalhadores! O próprio Bolsonaro, também contra a corrupção, agora enredado com o centrão de triste fama para se blindar contra um possível impedimento, e às voltas com problemas de desvio de dinheiro público envolvendo um de seus filhos.
O quadro é assustador. O senador Tasso Jereissati teve a coragem de afirmar que o sistema político brasileiro está falido. Poderia ter acrescentado, e corrompido ao extremo nos três níveis de governo, como se constatou, mais uma vez, com as verbas destinadas a combater o coronavírus nos municípios e nos estados, inclusive agora, novamente, no estado do Rio de Janeiro.
Regimes políticos bem sucedidos têm como base um arcabouço político-institucional ancorado em indicadores como liberdade de imprensa; educação pública de qualidade; moeda estável; voto distrital puro; recall; normalmente sistema parlamentarista; corrupção sob controle; partidos políticos fiéis a seus programas; orçamento impositivo; e confiança popular como pilar das instituições. Nossa malfadada república, ainda hoje, não satisfaz sequer 20% destes doze indicadores de qualidade político-institucional. O Império, a seu tempo, já satisfazia mais de 80% dos mesmos. Ficam cristalinas as razões, desde seu início, da incapacidade congênita da república em dar certo. Além deles, há que se levar em conta as tradições e cultura de cada povo.
O Brasil foi, durante quase quatro séculos, uma monarquia, ao passo que a república tem pouco mais de um século. As tradições e a cultura nacionais apontam na direção da monarquia parlamentar. Um monarca constitucional reúne quatro virtudes que um chefe de Estado republicano jamais terá: não depende de partidos políticos; a posição que vai ocupar não deverá favores a grupos econômicos; tem visão de longo prazo inerente; e seu interesse pessoal se confunde com o interesse público.
E ainda teremos um chefe do executivo, o Primeiro-Ministro, prestando contas semanais de seus atos ao Parlamento e ao Chefe de Estado, o monarca, a quem não pode sonegar informação alguma. E os parlamentares (vereadores, deputados estaduais e federais) prestando contas mensais de seus atos em seus distritos eleitorais, podendo ser substituídos em eleição convocada apenas no distrito eleitoral insatisfeito.
Indagado sobre a possibilidade de uma intervenção militar, o Gal. Heleno foi incisivo: “Não resolve nada!” Daria um bom epitáfio para a república.