Crises e voto antigoverno fazem América Latina se voltar à esquerda

09/01/2022 17:00
Por Carolina Marins e Fernanda Simas / Estadão

O ciclo eleitoral da América Latina, que começou em 2020, trouxe de volta ao poder partidos de esquerda. Nas últimas semanas de 2021, Chile e Honduras elegeram presidentes esquerdistas para substituir líderes conservadores. Este ano, mais três eleições apresentam favoritos à esquerda: Brasil, Colômbia e Costa Rica.

Os novos líderes esquerdistas, no entanto, terão pela frente severas restrições econômicas e oposição legislativa, que podem frear suas ambições, além de terem de lidar com eleitores inquietos e dispostos a punir quem não cumprir as promessas de campanha.

Como as vitórias se devem mais à raiva contra governos em final de mandato, e não foram resultado de uma adesão a ideias socialistas, esses novos líderes correm o risco de terem o mesmo fim dos conservadores que eles derrotaram, caso não montem coalizões estáveis e mostrem resultados concretos.

Mas, por enquanto, na América Latina, eles navegam com vento favorável. Hoje, três dos quatro países que compunham a Aliança do Pacífico, que deveria ser o bloco dos países mais liberais da região, estarão agora sob governos de esquerda: Chile, Peru e México. O outro membro, a Colômbia, terá eleições em maio e um candidato de centro-esquerda é favorito. Em caso de vitória, os esquerdistas chegariam ao poder nas seis maiores economias da região.

Para analistas, a crise econômica, o aumento da desigualdade e um sentimento antigoverno alimentaram a insatisfação com a centro-direita e a direita que dominaram a região havia alguns anos. A esquerda prometeu uma distribuição mais equitativa da riqueza, melhores serviços públicos e maior rede de segurança social.

Entre as causas dessa guinada esquerdista nas grandes economias latino-americanas está o fracasso dos governos de turno. Mauricio Macri (Argentina), Enrique Peña Nieto (México) e Sebastián Piñera (Chile), todos liberais e conservadores, terminaram seus mandatos com recorde de reprovação. Iván Duque, na Colômbia, segue o mesmo caminho.

“Na América Latina, há uma identidade que se caracteriza pelos ‘antis'”, disse Milagros Campos, cientista política da Pontifícia Universidade Católica do Peru. “No Peru, foram justamente esses ‘antis’ que decidiram a eleição.”

Em abril de 2021, o professor Pedro Castillo foi eleito presidente peruano por uma margem pequena contra a candidata de direita Keiko Fujimori. “As eleições não foram só polarizadas, mas mostraram um desencanto da população. Faltava um mês para a votação e nenhuma candidatura chegava a 20%”, lembrou Milagros. No fim, o voto em Castillo não foi uma escolha por ele, mas sim um rechaço ao fujimorismo.

O mesmo ocorreu no Chile. José Antonio Kast, candidato de direita que defendia o legado do ditador Augusto Pinochet, foi derrotado pelo socialista Gabriel Boric graças ao voto anti-Kast. O candidato do expresidente Sebastian Piñera sequer chegou ao segundo turno.

RADICAL.

A virada não significa uma mudança na sociedade latino-americana, mas o resultado da polarização crescente, a mesma que explica a onda conservadora anterior. “A polarização é um fenômeno mundial”, afirma Xavier Rodríguez Franco, cientista político da Universidade de Salamanca. “Ela tem a ver com o esgotamento do sistema político, mas também porque a sociedade está recebendo uma quantidade grande de informação que leva a um debate público empobrecido, onde só há duas opções: ou é um dos meus ou está contra mim.”

O resultado é o achatamento do centro e da terceira via. Com dificuldade de propor um discurso que não seja radical, e com uma ampla fragmentação do centro, que leva a diversas candidaturas menores, a polarização leva a eleição de lideranças mais radicais.

Mas esses governos não estão encontrando vida fácil. No México, Andrés López Obrador, e Alberto Fernández, na Argentina, sofreram derrotas nas eleições legislativas. Com poucos meses de governo no Peru, Castillo já trocou seu gabinete diversas vezes e quase sofreu um impeachment.

“O que fica claro é que Castillo é um presidente sem maioria no Congresso e com pouco apoio de seu partido Peru Libre”, afirma Milagros. “O partido já perdeu gente no Congresso, já se fala em uma terceira troca total de gabinete. É um governo instável e é muito difícil que termine seu mandato.”

No Chile, antes mesmo do segundo turno, Boric precisou revisar seu programa de governo e buscou moderar seu discurso para convencer os centristas de que não seria um esquerdista radical, como temiam. “Quando chegam ao poder, o que vão fazer?”, questiona Xavier Rodríguez Franco. “O empresário de direita continuará existindo. O banqueiro, também. E vão seguir fazendo política. A questão é o que o novo governo vai fazer quando tiver de lidar com as dificuldades de uma economia complicada, um Parlamento hostil e a opinião pública polarizada.”

Jovens líderes progressistas colocam na agenda novos temas identitários

Um ponto que difere esta guinada à esquerda da virada nos anos 2000, segundo Xavier Rodríguez Franco, da Universidade de Salamanca, é a característica dos novos líderes. “A nova esquerda, dos últimos 15 anos, tem incorporado novos conteúdos identitários”, disse Franco. “Eles abandonaram os trabalhadores, os sindicatos e lutam para que exista uma reivindicação trabalhista que seja sustentável com os novos tempos.”

Segundo Franco, embora esteja com uma nova roupagem e mais pautas na agenda, a esquerda latino-americana ainda está muito presa às velhas lideranças de sempre, como Luis Inácio Lula da Silva, no Brasil, Cristina Kirchner, na Argentina, e Evo Morales, na Bolívia. Ela foi incapaz de criar uma nova geração com carreira política. Quando há jovens, como no caso de Gabriel Boric, no Chile, e Pedro Castillo, no Peru, são desconhecidos.

Por serem menos conhecidos e em razão da oscilação política da região, não está claro que mudanças reais esta nova guinada esquerdista pode trazer à América Latina.

Se a onda anterior trouxe mais relações regionais e distanciamento dos Estados Unidos, esta nova esquerda parece trazer expectativas de aproximação com a China. No entanto, mesmo isso não parece tão certo.

“A China, com certeza, tem interesse em se projetar mais na região, mas ela não é ingênua, sabe que aqui tem muita instabilidade, muita dívida e problemas financeiros. Então, ainda não sabemos”, explica Franco.

Além disso, sobraram diversas promessas pendentes da velha esquerda, como renovação da matriz energética, migração e completa integração entre os países da região.

“A nova esquerda tem de revisar isso com muito sentido crítico, porque as novas lideranças e as velhas lideranças dessa nova onda esquerdista não parecem questionar o porquê de as pessoas terem optado por essa onda de conservadorismo que agora vem sendo superada”, disse Franco.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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