Cristo em plena forma e substância

05/06/2021 08:00
Por Gastão Reis

Ao visitar a livraria da Editora Vozes no seu prédio-sede, eu me deparei com um livro, editado por ela, de cerca de 800 páginas, que nos fala do novo testamento, sem esquecer o velho, de modo intrigante e fascinante. O título é “JESUS – A enciclopédia”, sob a direção de Joseph Doré, publicado na França, em 2017, e no Brasil, em 2020.  A tradução merece aplausos pela qualidade. O livro percorre, em linhas gerais, o roteiro da Bíblia, embora a Editora Albin Michell, francesa, não seja confessional nem tenha ligações com grupos religio-sos. O interesse maior era aprofundar o conhecimento do Jesus histórico.

Jean Moutappa, no prefácio da edição francesa, nos chama a atenção para alguns pontos importantes. Não foi aberto espaço no livro para a chamada tese “mitista”, de mito, segunda a qual Jesus de Nazaré nunca teria existido. E simplesmente pelo fato de que estudos científicos, hoje disponíveis, não lhe dão respaldo algum. O segundo ponto é sobre Joseph Doré, coordenador da obra, sacerdote católico, arcebispo emérito de Strasbourg, intelectual e teólogo reconhecido mundialmente, e ex-presidente de uma Academia internacional e interconfessional de ciências religiosas. Seus trabalhos e publicações ao longo da vida o elevaram à condição de sábio capaz de reunir autores de sete países, cujas credenciais são sua expertise nos temas tratados, sem proselitismos.

É impossível resumir um livro como este em um artigo de duas laudas. Mas é possível destacar seus principais pontos e revelações.

A primeira delas, no texto de Michel Quesnel, da Universidade Católica de Lyon, nos fala de três critérios basilares da obra. O primeiro, das atestações múltiplas, nos relembra que “uma palavra transmita por diversas fontes independentes uma da outra tem chances de ser autêntica”. Este liquidou com a tese “mitista”. O segundo é o critério da dessemelhança entre o que Jesus disse e o que as comunidades cristãs primitivas lhe atribuíam, como o fim próximo dos tempos, que só Deus sabe quando será. E o terceiro critério de explicação suficiente ou de plausibilidade: “embora Jesus tenha sido condena-do pelo poder romano, a decisão de suprimir Aquele que incomodava foi toma-da primeiramente pelos ambientes sacerdotais de Jerusalém”, que se sentiam ameaçados pela Boa Nova anunciada por Cristo. E não pelo povo judeu.

Marie-Françoise Baslez, da Universidade de Paris IV-Sorbonne, nos fornece uma informação importante sobre a escravidão. O império romano desenvolveu o tráfico em grande escala para “liquidar e rentabilizar os prisioneiros de guerra”. A autora não comenta, mas isto nos relembra a libertação dos judeus da escravidão no Egito e os desígnios de Deus, desde então, sobre a questão.

Michel Berder, do Instituto Católico de Paris, em seu texto, nos diz que a bíblia é polifônica. Ela abre espaço para muitas vozes. É democrática. E isso, podemos acrescentar, vem de longe, ainda do Velho testamento, com os profetas e suas críticas aos poderes. E mais ainda do Novo com Jesus Cristo. De fato, Katell Berthelot, CNRS, Aix-en-Provence, nos fala de Suas “relações bastante tensas com os sacerdotes que controlavam o Templo de Jerusalém”.

O mesmo Berthelot toca numa questão sensível quanto à visão da época em relação aos “impuros”. Em suas palavras, Jesus se apresenta “como habitado por uma santidade que, longe de ser ameaçada pela impureza, triunfa sobre ela e permite a reinserção dos “impuros” na comunidade”.  Isso nos permite concluir que Jesus não era, nem poderia ser, calvinista. O pecado mor-tal do calvinismo é pregar que Deus escolhe de antemão os eleitos, o que seria “prova” da imperfeição divina, coisa que não faz sentido com o envio do Filho. É um Deus que vem para servir e não para ser servido. Absoluta novidade.

Paolo Mascilongo, do Colégio Alberoni, Piacenza (Itália), em “Jesus escolhe e reúne”, nos fala de um ponto que não é discutido: “o fato de (Jesus) ter reunido em torno de si um grupo de homens e (atenção!) de mulheres, que deviam se tornar seus discípulos”. Isto confirma a grande abertura do Nazareno em relação às mulheres. Maria como mãe, repito, mãe de Deus, nos diz muito.

Daniel Marguerat, da Universidade de Lausanne (Suíça) aponta três originalidades da pregação de Cristo face a seus contemporâneos. A primeira é que sua mensagem sobre o Reino não exibe “nenhum traço nacionalista”. É para todos os povos.  “A segunda é que Jesus não se deixa envolver pelo pessi-mismo da espiritualidade que chamamos de apocalíptica”. Ou seja, a crença exacerbada no fim dos tempos. E a terceira, nas palavras dele: “A originalidade fundamental de Jesus consiste em considerar que o Reinado de Deus é futuro e ao mesmo tempo está muito próximo – podemos dizer: futuro e presente”.

O livro, através do texto de Camille Focant, da Universidade Católica de Lovaina (Bélgica), nos permite ainda tirar uma lição bastante atual para os descaminhos de nosso país. Jesus faz uma advertência contra os escribas do Templo. Reproduzo as palavras dela: “É à vaidade que eles se apegam, sob todas as suas formas: distinguir-se pelo vestuário, atrair o reconhecimento público e as saudações, escolher os primeiros lugares na sinagoga e nos banquetes”. Em suma: a busca pelos sinais de consideração.  A carapuça não é  perfeita para muitos homens públicos, em especial ministros do STF?

Trata-se de um livro extraordinário. Imperdível. A Abertura, que vem no final, estranhamente, na página 749, da lavra de Joseph Doré, merece ser lida e meditada. Boa dica para quem quiser se convencer de que vale a pena levar o livro para casa. Aparentemente ainda não tem edição digital, mas deveria.

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