Crônica do Ataualpa: A sobrevivência nas ruas
Fria era a noite. Caía uma chuva fina. Caminhava sob as marquises do lado ímpar da Rua do Imperador para não ter que abrir o guarda-chuva. Voltava para casa ao final do terceiro turno. Carregava o peso do suor do dia…
Encontrei, sentada na calçada, uma terna senhora. Debaixo do cobertor, aquecia o seu inseparável vira-lata. Como a conhecia, pelas andanças com a Pastoral de Rua, cumprimentei-a e parei para alguns segundos de prosa.
– Oi! Como tá a senhora!
– Tô bem! O …já tá dormindo! Hoje tá muito frio, né!
– É verdade!
– Cadê o pessoal da Pastoral? Vai passar hoje por aqui?
– Não, hoje não é o nosso dia de fazer visita aos irmãos…
– Você sabia que hoje é meu aniversário?!
– É mesmo?! Que legal! Parabéns! Muitos anos de vida!
Depois que a parabenizei, olhei para os lados. Só havia farmácias de plantão, bares e restaurantes abertos…
– Espere um minutinho! Daqui a pouco eu volto…
Fui ao bar mais próximo. Os salgados nas bandejas abaixo do vidro do balcão não estavam convidativos. Não sabia quanto tempo ali estavam. Pedi uma porção de bolinho de bacalhau e duas latinhas de refrigerante. Esperei o tempo da fritura.
Voltei ao encontro da dócil senhora que era vista como avó por vários jovens da Pastoral. Por alguns que viviam na rua, ela nutria um carinho materno. Dava sempre conselhos para que parassem de beber. Ela não se envolvia com álcool, nem com droga alguma.
– Agora vamos comemorar o seu aniversário! – Puxei “um parabéns pra você” que ficou pela metade. Compartilhamos os bolinhos, brindamos com refrigerante. O cheiro de fritura e o barulho da abertura das latinhas acordaram o cachorro, que também provou dos bolinhos. Já estava habituado a receber parte do que ela comia. No meio da nossa conversa, ela fez uma indagação:
– Você não quer me dá um guarda-chuva de presente de aniversário?
– Só tenho este. As lojas estão fechadas. Amanhã,posso comprar um mais bonito e te dou de presente…
– Não precisa comprar. Pode me dar esse mesmo. Depois vou ter que sair daqui pra tomar café. Essa chuva vai até amanhã. Com o guarda-chuva, não vou me molhar…
Dei o guarda-chuva. Eu me despedi e continuei no meu caminho na direção de casa com a certeza de que havia feito uma boa ação. Mas carreguei uma reflexão sobre a solidão das pessoas que vivem em situação de rua.
No sábado, dia em que nos reuníamos para visitar os irmãos, contei a minha “boa ação” à coordenadora da Pastoral que soltou uma bela risada.
– Professor, ela faz aniversário todo dia. É o jeito dela pediras coisas. Sempre diz que tá fazendo aniversário.
Eu também sorri. Pela primeira vez tive a sensação de ter sido enganado, mas não me senti lesado. Em nenhum momento desconfiei da possibilidade de que ela poderia não estar aniversariando.
Esse fato que narrei não está no livro que escrevi com o título “Tragam a Túnica Nova”, que reúne relatos de irmãos acolhidos pela Pastoral de Rua e pela Oficina de Jesus, obra fundada pelo eterno Padre Quinha. Só o relatei agora para exemplificar o sentido do verbo “manguear” que hoje está tão em voga.
A sobrevivência nas ruas leva a pessoa a utilizar certos artifícios para sensibilizar, comover e obter o que deseja. O apelo emocional é estratégico, é um recurso que todos usam. A insistência também faz parte da abordagem. Não há dúvidas de que se constatam situações inconvenientes. Porém isso não é motivo para tratar os mangueadores com estupidez. Tenho presenciado cenas tristes. Como se não bastasse a situação precária em que se encontram, ainda têm que sofrer as agressões, as humilhações que ferem a alma.
Mais uma vez, toco nesse assunto, porque aumentou, consideravelmente, o número de pedintes nas ruas neste período pandêmico. Com isso, a intolerância diante das abordagens também cresceu. Por isso, estou aqui novamente ressaltando o fato de que temos a liberdade para dizer “não” e negar qualquer tipo de ajuda. Mas ninguém tem direito de agredir o outro. E reafirmo: a gentileza não pesa no bolso.
A senhora que mencionei aqui pedia com os olhos. Esperava alguém olhar nos olhos dela para solicitar ajuda. Antes de pertencer à Pastoral, eu já conhecia a solidão que ela carregava no olhar. Até hoje tenho, na memória, o silêncio de um senhor cego que, com uma caixinha na mão, ficava sentado na rua do Imperador, no lado ímpar, próximo a uma sapataria. Ficou ali durante anos com um silêncio persuasivo que não sai da minha memória. Pedia com o silêncio.