Crônica do Ataualpa: Para dar nomes aos bois

10/04/2022 08:00
Por Ataualpa Filho

Na estrada do tempo, não é preciso ter pressa. Não podemos atropelar o presente. Para que acelerar o passado? A contemplação da paisagem vista da janela diminui em função da velocidade do trem. A história, quem carrega é a língua. Nem tudo que está na lembrança são imagens. Palavras também organizam o pensamento. Con-verso comigo. As relembrações não deixam esquecer o solo em que as nossas raízes estão fincadas.

Lembro-me do período em que buscava as letras na clássica cartilha do Método ABC. Enquanto a minha mãe engomava com ferro a carvão, eu ficava ao lado, brincando de juntar letras para formar palavras. Depois dava a ela para ler o que tinha escrito. O primeiro vocábulo com significado que escrevi assim aleatoriamente foi “Nair”. Recordo-me, pois se tratava do nome da madrinha do meu irmão.

Lembro-me também, mas sem nenhuma saudade, do antigo Exame de Admissão. Passei por esse funil com dez anos e seis meses. Depois das provas, tive uma dor de cabeça também inesquecível. A pressão emocional foi enorme. Mas tudo ficou bem. Andava orgulhosamente com a farda do Liceu Piauiense. O mesmo orgulho, eu sentia com o uniforme do Colégio Pedro II no Rio, no qual conclui o antigo Científico.

Fiz esse breve relato para lhe dizer que o gosto pelas palavras cultivo desde a infância. A primeira carta que escrevi foi endereçada à minha avó materna. Escrevi também muitas cartas de amor. Na época, namorava-se por correspondência. O platonismo era uma rede social. Pétalas desidratadas, aromatizadas seguiam com cartões “Amar é…”

“Todas as cartas de amor são/ ridículas./ Não seriam cartas de amor se não fossem/ ridículas./ Também escrevi em meu tempo cartas de amor,/ como as outras,/ ridículas. As cartas de amor, se há amor,/ têm de ser/ ridículas. Mas, afinal,/ só as criaturas que nunca escreveram/ cartas de amor/ é que são ridículas”. Afirmara o poeta Fernando Pessoa a quem devo essa busca da identidade dos eus. A caminhada do raso ao profundo é uma odisseia…

No início da década de 80, quando entrei no curso de Letras, levei um choque: era tanto “ismo”, “ista”, “ano”, “pré”, “pós”, “neo”, “hiper” que cheguei a pensar que os afixos eram mais importantes do que os radicais. Fui apresentado ao empirismo. Tentava entender o mundo destilado. A expressão “já era” era comum na época. Mas havia um pouco de romantismo nas “amizades coloridas”. No escurinho do cinema, rolavam beijos e lágrimas. Nas discussões dos bares, a culpa sempre recaía em duas palavras: “regime” e “sistema”. Procurei entendê-las…

Hoje, diante dos discursos de certos “influenciadores”, fico a pensar como as palavras são usadas desconectadas da verdade. Às vezes, imagino a reação dos conservadores quando se deparam com um reacionário ou um sectário usando a palavra “conservador”, falando de “pátria”, “família”, “religião” com um comportamento totalmente contrário, sem prática ética, com uma conduta típica de falso moralista.

Quem defendeu o comunismo na autêntica linha de Karl Marx deve estar decepcionado com os grandes investimentos no mercado financeiro praticados pelos oligarcas de países denominados socialistas. Fazem fortunas em nações que rezam pelo lucro do mercado de ações. Exploram a mão de obra de proletários.

Acredito que os defensores do Capitalismo também estão incomodados, uma vez que, na economia dos países em que vivem, circula o capital estrangeiro vindo de nações consideradas socialistas. Muitos não olham a procedência do dinheiro que recebem. Cifrões com manchas de sangue ostentam o vazio de criaturas desumanas. As contradições também têm nome…

“A disposição em admirar e quase idolatrar os ricos e poderosos e, ao mesmo tempo, desprezar e negligenciar os pobres é a maior e mais universal causa de corrupção dos nossos sentimentos morais.” Disse Adam Smith, considerado o pai do liberalismo, que também afirmou que “nenhuma nação pode florescer e ser feliz enquanto grande parte de seus membros for formada de pobres e miseráveis”.

“Senhoras e senhores”, o circo já foi armado há muito tempo. Os palhaços é que não são autênticos. Não são os profissionais do riso, não alegram as crianças que habitam em nós. Não produzem humor, não são os Carlitos que nos fazem rir e pensar. Os que estão aí nesse picadeiro professam o ódio, a discórdia, promovem conflitos bélicos, escrevem, com sangue, a história.

Não perdi a fé. Acredito no Verbo que se fez carne e que habitou entre nós. Como também acredito que os humildes herdaram a Terra em bem-aventuranças, em Paz e Bem.

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