Crônica do Ataualpa: Por Incidente em Antares e Nova Califórnia

19/12/2021 08:00
Por Ataualpa Filho

Antes de Michael Jackson lançar o álbum “Thriller” em 1982, Erico Veríssimo já havia publicado, em 1971, “Incidente em Antares”. Obra esta com o enredo contextualizado na década de 60. Antares é uma cidade imaginária no sul do país, administrada por gestores apegados às ilicitudes.

Érico Veríssimo mergulhou no realismo fantástico e deu-nos uma bela reflexão, quando sete defuntos, diante da greve dos coveiros da cidade, levantam dos caixões para reivindicar o direito de serem enterrados dignamente. E, nessa investida, começam a expor outros problemas do mundo dos vivos. Os mortos insepultos questionam não somente a equipe gestora do município, mas também exercem uma cobrança perante os munícipes, fundamentada em padrões éticos. Para os vivos, além do incômodo do cheiro cadavérico, havia o medo diante dos finados que perambulavam pelas ruas, sem trilha sonora.

O Brás Cubas, defunto autor, personagem criado por Machado de Assis, foi bastante categórico ao fazer a seguinte afirmação no relato de suas memórias, lançadas em 1881: “A franqueza é a primeira virtude de um defunto, pois na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças, obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência.”

E aqui, fazendo uso dessa franqueza citada por Brás Cubas, temos que admitir que é uma enorme falta de respeito o vandalismo que está ocorrendo nos túmulos dos cemitérios do país. E não se trata de pichações adolescentes, são ações de crimes organizados. Os furtos são frequentes, as violações são constantes. E a impunidade é um incentivo para que outros crimes venham a ocorrer. 

O terror é produzido pelos vivos, não pelos mortos. A barbárie vem das ações humanas. Houve um tempo em que os cemitérios eram chamados de campos santos em função do respeito aos entes queridos que partiram para a eternidade. O silêncio, as orações, a contenção dos diálogos eram sinais de reverências às necrópoles. Até acho que não seja uma unanimidade, entre os que optam por viver fora da lei, essa ação devastadora que constatamos nos cemitérios.

Foi com profunda tristeza que vi o túmulo de Raul de Leoni vandalizado no Cemitério Municipal de Petrópolis. As ações cometidas não se tratavam apenas de agressões à memória do poeta petropolitano com maior expressividade na Literatura Brasileira, mas também de um ato de violência ao patrimônio histórico. O ganho econômico de quem vandalizou não paga a lesão histórica que ficou chagada na cultura do Município. É uma lástima a voracidade econômica, cega das referências históricas e do amor à arte. Esse vandalismo nos cemitérios do país é o retrato de uma insensibilidade crudelíssima.

A ganância pelo vil metal e o desrespeito aos mortos, Lima Barreto abordou no conto “Nova Califórnia”, que relata um episódio em Tubiacanga, cidade também fictícia no interior do Rio de Janeiro. O personagem Raimundo Flamel chega à localidade de forma repentina. A população desconfia de que se trata de um químico famoso, que descobriu uma fórmula capaz de transformar ossos humanos em ouro. O boato circula entre os moradores que começam a saquear o cemitério. Mesmo sem provas de que essa transmutação fosse possível, as pessoas violam os túmulos. Na pacata cidade, a violência se alastra nas brigas por ossos.

Aprendi na infância a respeitar os mortos. No dia de finados, em casa, não se ligava o rádio. E, nas emissoras de Teresina, as músicas eram lentas, demonstravam um sentimento de tristeza. As frequentes chuvas em 02 de novembro deixavam o dia sombrio.

Não acredito que alguém que queira ganhar a vida violando túmulos consiga ser feliz. A degradação moral chega a estágios tão deprimentes que pessoas insensatas ferem até a memória dos mortos. É triste ver essa decadência humana. São dignos de pena os homens que só enxergam o vil metal.

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