Cronista da Cidade Maravilhosa

23/06/2021 08:20
Por Marcio Dolzan / Estadão

Na rua onde, há quase 140 anos, teria nascido um dos cronistas que melhor soube retratar o cotidiano carioca, o movimento de pessoas é frenético. Elas se esgueiram pela fileira única de carros, num entra e sai sem parar por lojas de comércio popular. No número 284, a fachada do segundo andar ainda remete ao Rio antigo. O térreo e seu sem-número de apetrechos eletrônicos exibidos ao longo da loja, porém, deixam claro que os tempos são outros. “João do Rio? Nunca ouvi falar”, diz o dono, um imigrante chinês, detrás do balcão.

João do Rio foi o mais famoso pseudônimo do jornalista Paulo Barreto, segundo ocupante da cadeira 26 da Academia Brasileira de Letras (ABL). Nesta quarta, completam-se 100 anos de sua morte.

Frequentador contumaz de bares e cafés do centro da capital fluminense, habitual caminhante de suas ruas, autor e tradutor de peças de teatro, João do Rio se notabilizou pelas crônicas descritivas contadas em textos nada monótonos. Foi autor de trabalhos marcantes, hoje considerados como algumas das primeiras análises antropológicas e sociológicas do Brasil dos séculos 19 e 20.

“Ele foi extremamente importante, porque o modo de contar o cotidiano fez com que criasse um método próprio. E mostra isso na primeira crônica de seu livro A Alma Encantadora das Ruas, quando nos apresenta o flanar”, diz o historiador Antônio Edmilson Rodrigues, professor da PUC-Rio e da Uerj. “Ele desenvolveu o método João do Rio, o método do pedestre, de andar, perambular pela rua. E sempre com inteligência, refletindo sobre o que vê.”

Mais que criar uma maneira própria de retratar o cotidiano carioca, João do Rio deu visibilidade a grupos que até então eram ignorados pelos jornais e escritores. “Nesse livro, ele apresenta os meninos de rua, ou o que se chamava na época de infância culpada. Ele vai apresentar estes meninos de rua através das pequenas profissões, a academia da miséria”, explica Rodrigues. “E também os tipos urbanos que estão envolvidos nesse baixo mundo, como tatuadores, prostitutas, cocheiros.”

Apesar disso, cem anos depois de sua morte, a importância de seu trabalho parece ainda se restringir àqueles que se dedicam a estudar sua obra. As ruas da capital fluminense que tanto lhe inspiraram desconhecem seu legado, e os lugares que lhe foram marcantes ou não existem mais, ou estão mal cuidados, ou ainda carecem de registros que remetam à época.

Duas ruas muito frequentadas por João do Rio e outros intelectuais da época hoje perderam todo o seu glamour. A Rua do Ouvidor, famosa por suas livrarias, e a Gonçalves Dias, por seus cafés, atualmente são apenas mais duas vias estreitas como tantas outras, ocupadas por lojas de roupas, calçados, chocolates e floristas.

Entre as raras exceções, está a famosa Confeitaria Colombo, ainda hoje um dos destinos mais frequentados por turistas que vão até o centro. Seus belos salões dourados, ornamentos e atendimento impecável remetem à capital que encantava João do Rio no início do século passado. Há diversos registros escritos de que o cronista frequentava seus salões, mas hoje a citação de seu nome por lá não traz nenhuma lembrança.

A falta de referências não é incomum. “Ele permaneceu muito tempo esquecido. Só foi resgatado na década de 1980 pelos cursos de jornalismo, que começaram a dar relevo a essa invenção dele de criar reportagens de rua. Ainda hoje é difícil ter acesso à obra completa”, conta Antônio Rodrigues.

A própria capital fluminense que ele tanto retratou não lhe rendeu as devidas glórias. “O menosprezo é visto na homenagem que a cidade lhe deu: uma rua muito curta em Botafogo, e que nem é chamada João do Rio, e sim Paulo Barreto.

Enquanto isso, em Portugal ele é nome de rua perto da prefeitura em Póvoa de Varzim, e de uma praça com busto em bronze em Lisboa”, ressalta o historiador.

Negro, obeso e homossexual em uma sociedade que não fazia questão nenhuma de esconder seu preconceito, João do Rio colaborou com diversos jornais da época, em especial a Gazeta de Notícias. Em 1920, fundou o jornal A Pátria, a fim de ter liberdade para escrever sobre o que quisesse e da maneira que quisesse. Quis o destino, porém, que João do Rio morresse logo no ano seguinte, vítima de um enfarte fulminante.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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