Cunha Bueno: um homem, um ideal e um caminho

27/jan 10:12
Por Gastão Reis

Antônio Henrique Bittencourt da Cunha Bueno faleceu em 22 de janeiro de 2024, às 5 horas da manhã, com a idade de 74 anos, em São Paulo capital. Era descendente daquele grupo de paulistas quatrocentões, gente que se orgulha de suas origens, que vão além de apenas saber ganhar dinheiro, em especial no caso da cepa que lhe deu origem. Exagero? Não mesmo. Sua mãe, Dona Edy Bittencourt da Cunha Bueno, foi
criadora e mantenedora da creche administrada pela AMPLA – Associação de Assistência aos Menores de Platina, município do estado de São Paulo. Além disso, muitas das conquistas e avanços sociais da cidade tiveram origem nas iniciativas de Antônio Sylvio da Cunha Bueno, seu pai, e dele próprio.

O ex-deputado federal Cunha Bueno, após um mandato como deputado estadual na ALESP – Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo -, se reelegeu por sete mandatos consecutivos como representante de seus eleitores até 2003, quando então se afastou da política. Ele obteve impressionantes dois milhões de votos para senador por São Paulo, sem, no entanto, se eleger. Não se sentiu derrotado após essa votação reveladora do reconhecimento de seu profícuo trabalho na Câmara dos Deputados.

Quando alguém se elege por sete mandatos consecutivos, ou seja, 28 anos de atuação legislativa federal, há uma explicação muito simples: fez um excelente trabalho ao longo de tantos anos. Ainda me lembro dele me falando de sua prestação anual de contas, que ocupava uma página inteira da Folha de São Paulo, em entrevista tradicional dada a um amigo jornalista. Até aqui, falamos do homem e de sua visão de
responsabilidade de homem público.

Mas como surgiu seu ideal de restabelecer a monarquia parlamentar que tantos benefícios nos trouxe ao longo dos séculos, na Colônia e no Império? A palavra colônia é imprópria, dado o seu desenvolvimento, ao se igualar à da metrópole, e até superá-la, por volta de 1800, caracterizando uma obra de povoamento e geração de riqueza, como as pesquisas mais recentes comprovam. No Império, trabalhos acadêmicos como o dos Profs. Bacha, Tombolo & Versiani nos revelam, com métodos adequados e evidência estatística bem fundamentada, que o Império acompanhou o crescimento da Europa e da América Latina na faixa de 0,9% de crescimento anual da renda real per capita.

Na verdade, Cunha Bueno estava na boa companhia de historiadores e diplomatas que nos garantiam o quadro exposto no parágrafo anterior em contraposição a obras como a de Celso Furtado, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro, Vianna Moog e Jorge Caldeira. Estes nos traçam um quadro de “atraso e estagnação (…) sem se dar ao trabalho de estudar melhor esse período de nossa História”, como nos informa Heitor Lyra em sua magistral obra “História de Dom Pedro II”. Juntamente com Lyra, formam nessa linha de frente os seguintes nomes de peso, também profundos conhecedores de nosso passado: Helio Vianna, Boris Fausto, Oliveira Lima e João de Scantimburgo.

Helio Vianna nos revela que o orçamento do Império decuplicou, em termos nominais, entre 1840 e 1889, com uma inflação anual média entre 1 e 1,5%, diante de uma população que apenas dobrou. Logo, seria impossível que o crescimento da renda real per capita tivesse sido tão medíocre como nos informa a historiografia econômica consolidada. Esta conclusão reforça a posição nada saudosista de Cunha Bueno em
ver também no Império um período em que o País acompanhou o resto do mundo não só em crescimento como de respeito internacional. Fomos bem-sucedidos tanto no plano político-institucional, via parlamentarismo com poder moderador, como no econômico, pelo que acabamos de expor.

Todavia, o principal legado de Cunha Bueno foi nos apontar um caminho a ser seguido para livrar o Brasil do descaminho histórico em que a república nos meteu. Foi o criador e presidente nacional do MPM – Movimento Parlamentarista Monárquico – e autor da proposta que instituiu o plebiscito de 1993. No episódio inconstitucional da antecipação do plebiscito, de 7 de setembro para 21 de abril, Cunha Bueno chegou a
pensar em retirar o quesito Monarquia do plebiscito. O eleitor iria às urnas desinformado sobre as reais possibilidades de qualquer das três alternativas. Mas, como hoje, foi adiante.

Em visita a São Paulo, eu lhe fiz o seguinte relato. Num evento ocorrido no Rio de Janeiro, em meados de 2022, um grande amigo e ex-embaixador me advertiu: “Gastão, esquece esse negócio de monarquia”. Eu revidei, com uma pitada de senso de humor: “Mas como, meu caro, tendo um cabo eleitoral como esta república moralmente falida?”. Cunha Bueno abriu um sorriso, sabendo que seu ideal tinha sentido prático e que iria sobreviver.

No final de 2022, eu o visitei e lhe presenteei com um exemplar do meu terceiro livro “História da Autoestima Nacional – Uma investigação sobre monarquia, república e preservação do interesse público”. Na dedicatória, eu lhe chamei a atenção para a página 213, onde tem um quadro comparativo das instituições do Império e da república. Ali estavam 12 indicadores de qualidade político-institucional. O Império, em seu tempo, conseguia satisfazer cerca de 80% deles. E a república, ainda hoje, não atinge sequer 20%. Um país travado.

Eu lhe assegurei que o caminho seria difícil, mas não impossível, para ir em direção às instituições que já tivemos no século XIX. Cada vez mais, os economistas enfatizam a importância da qualidade das instituições de um país para lhe garantir o crescimento sustentado a longo prazo, com instituições capazes de coibir os desmandos da classe dirigente e visão de futuro.

É fácil prever que, sem uma reforma de fôlego em nossas instituições, vamos continuar a marcar passo. Uma conhecida colunista da grande mídia, em artigo de 24.1.2024, nos diz que Lula precisará reconstruir sua relação com o Congresso. De fato, este não é apenas um problema dele. Foi o mesmíssimo de presidentes anteriores que se elegeram sem ter maioria no Congresso. É a marcha da insensatez que se repete na esquizofrenia presidencialista de sempre. Cunha Bueno continua tendo razão. E de sobra. Mãos à obra.

“O legado da herança luso-afro-indígena até 1889”. 

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