Da aids ao SUS, Drauzio Varella fala sobre seus 50 anos de carreira médica

30/05/2022 08:23
Por Ubiratan Brasil / Estadão

Quando a medicina cruzou o caminho da literatura, o resultado foi o aparecimento de escritores como o russo Anton Chekhov e o britânico Arthur Conan Doyle, além dos brasileiros Guimarães Rosa, Pedro Nava e Moacyr Scliar, para citar apenas alguns. Em todos, desponta uma rara capacidade para reproduzir a imagem e a alma do ser humano, com suas sutilezas, contradições e banalidades, autores sempre motivados pelo aguçado sentido daquilo que é realmente importante na vida. E, nessa lista, é necessário incluir o oncologista Drauzio Varella, que acaba de lançar O Exercício da Incerteza (Companhia das Letras).

Trata-se de suas memórias médicas, que percorrem mais de 50 anos dedicados ao estudo e ao atendimento de pacientes sem distinção de raça, classe social e gênero. Ali, Drauzio, hoje com 79 anos, se recorda de momentos decisivos da evolução da medicina dos quais participou, como a descoberta do vírus da aids e as medidas de controle, tratamentos alternativos, mas eficazes contra o câncer (em um deles, aliás, conquistou notoriedade mundial) e a recente batalha contra a covid em uma sociedade metralhada por falácias divulgadas por negacionistas.

“Tive a ideia de escrever o livro quando recuperei um texto que preparei quando minha turma da Medicina completou 50 anos de formatura”, conta ele. “Durante o isolamento provocado pela pandemia, estendi as ideias que estavam ali, o que me permitiu ter uma grande visão do conjunto.”

Foi um processo de redescobertas, como quando escreveu sobre uma viagem que fez, ao lado de outros cientistas brasileiros, à então União Soviética, cuja evolução da medicina não era conhecida pelos países ocidentais. “Coletamos tão pouca informação, por conta do receio deles em transmitir algo valioso, que já nem me lembrava mais dessa viagem.”

Limites

Na verdade, a avaliação que se pode fazer dessas memórias é o interesse sempre presente pelas situações extremas, com a vida cada vez mais ameaçada pela morte. Drauzio sempre buscou testar os limites, tanto na fase em que atuou como sanitarista e presenciou a enorme precariedade da saúde brasileira a partir dos anos 1960 e 70, como quando resolveu viajar para os Estados Unidos onde, no início dos anos 1980, um vírus misterioso matava pessoas jovens, notadamente homens homossexuais – ele foi um dos primeiros brasileiros a ter conhecimento do vírus da aids que, além de ceifar vidas de forma brutal, difundiu um conceito segregacionista, o de grupo de risco, com a epidemia sendo tachada de “peste gay”.

“Não existe grupo de risco, mas comportamento de risco – isso é de extrema importância e espero que nunca mais se fale em uma coisa dessas nas epidemias”, comenta Drauzio, cuja escrita direta, simples, sem excessos (um adjetivo é o suficiente para destruir toda uma descrição), é suficiente para assombrar o leitor. Um estilo que vem depurando desde Estação Carandiru (1999), relato de suas experiências como médico voluntário no então maior centro prisional da América Latina, microcosmo que lhe permitiu melhor conhecer a sociedade brasileira.

Regras

Lá, ele conheceu as regras do mundo do crime ao mesmo tempo que conviveu com doentes graves, vítimas de câncer e de enfermidades decorrentes da aids, durante várias décadas, período em que presenciou histórias significativas e reveladoras da alma humana diante da proximidade da morte. Mesmo com a implosão do Carandiru, Drauzio manteve suas visitas aos encarcerados e hoje atende semanalmente no Centro de Detenção Provisória (CDP) do Belenzinho, na zona leste de São Paulo.

Tal atitude é fiel à decisão, tomada desde jovem, de se dedicar indistintamente aos necessitados, algo que não percebia na faculdade. “Éramos treinados no atendimento de pessoas pobres para ganhar experiência e acesso às de maior poder aquisitivo”, escreve no livro. “A consequência nefasta dessa forma de preparação era a formação de profissionais que tratavam com descaso os classificados como ‘indigentes’, enquanto bajulavam pacientes e familiares mais influentes. De um lado, a postura autoritária, impositiva; de outro, a submissa. As duas faces de uma mesma moeda.”

Diante de tal situação, Drauzio buscou caminhos alternativos, correndo até riscos – como no caso de um paciente cujo tratamento de câncer de pele estava ameaçado pela dificuldade de importação do medicamento necessário, a BCG injetável. Depois de um mês sem conseguir o remédio, Drauzio tomou uma decisão: ministraria BCG na sua forma oral, algo nunca testado antes. “Foi um dos momentos mais tensos de minha carreira”, recorda-se o médico, cujo sucesso foi documentado na revista internacional Cancer, a mais importante da especialidade.

Ser uma figura conhecida, aliás, é resultado de um processo de aceitação que começou precisamente em 1983, quando a epidemia da aids se alastrava pelo Brasil. Naquele ano, como a população não era informada sobre a prevenção necessária, Drauzio deu uma entrevista à rádio Jovem Pan sobre os cuidados mais urgentes.

Ao descobrir, porém, que a entrevista foi fatiada e reproduzida aos pedaços durante várias vezes na programação da emissora, Drauzio ligou para o então diretor de jornalismo, Fernando Vieira de Mello, que era seu amigo, reclamando de que aquilo iria deixá-lo mal-afamado entre outros médicos. A frase que ouviu foi decisiva para que descobrisse como os meios de comunicação são fundamentais na propagação de notícias necessárias: “Você precisa decidir se quer ajudar a população a evitar a doença ou ficar bem com seus colegas”.

Desde então, a imagem de Drauzio tornou-se conhecida e consolidada como símbolo de confiabilidade médica, participando de debates e de programas de TV. “Meu interesse é divulgar a importância da prevenção de doenças, pois evitaria essa lotação de hospitais e postos de saúde. Tratar de doentes é muito mais caro do que prevenir.”

Defensor ardoroso do Sistema Único de Saúde, o SUS (“Sua criação foi a maior revolução da medicina brasileira, algo amplamente reconhecido no exterior”), Drauzio é fascinado pela ciência, especialmente pelas descobertas que, embora simples, trazem enormes benefícios. “O soro caseiro, por exemplo, criado pelo austríaco Norbert Hirschhorn, é o avanço médico mais importante do século 20, responsável por evitar a morte de milhares de pessoas.”

O médico que corre diariamente no elevado João Goulart quando ainda está fechado para o tráfego, como treinamento para as maratonas que disputa com frequência, é também admirador da função terapêutica da arte. “A cultura te leva a níveis superiores do conhecimento”, reflete ele, admirador especialmente da literatura russa. “As paixões humanas, como em Ana Karenina, são apresentadas em maior profundidade. E os russos têm mais paciência na descrição dos personagens, o que me interessa como médico.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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