Da lama ao caos

02/02/2019 10:05

O belo samba diz: “não adianta estar no mais alto degrau da fama com a moral toda enterrada na lama”. Exatamente a situação da multinacional Vale do Rio Doce, maior produtora mundial de ferro e níquel, campeã em manganês, cobre, bauxita, alumínio e outros. Nasceu em 1942, em Itabira (MG). A mesma cidade que nos deu o poeta Carlos Drummond de Andrade, que dizia do hábito de sofrer dado ao itabirano. No caso da Vale, hábito de fazer sofrer.

Em 2007 passou a se chamar somente Vale S.A. Prenúncio? Ato falho de quem destruiria o Rio Doce? Bom, o fato é que já em 2012 – antes da tragédia de Mariana, que é de 2015 – foi eleita a “pior empresa do mundo” em direitos humanos e meio ambiente. Na votação internacional conduzida pelo Greenpeace, ganhou até da usina nuclear que vazou em Fukushima. “Oscar da Vergonha”, para inglória do Brasil.

Seu atual presidente, Fabio Schvartsman, assumiu com o lema “Mariana nunca mais”. Agora está aí, tentando tapar crateras da tragédia, com as ações desabando nas bolsas e a empresa sofrendo mil multas e processos. Algo deu muito errado na sua gestão. Fosse no Japão do passado, empresários em situação assim vexatória, dada a ética da honra samurai e a tragédia provocada, rasgariam o ventre com sua katana. Hoje cometem só o haraquiri moral e simbólico de toda a diretoria aparecer na TV chorando sonoramente e clamando perdão. O que é muito mais do que empresários brasileiros descarados estão dispostos a fazer.

O título desta crônica é do icônico álbum de Chico Science & Nação Zumbi, que em 1994 lançou o “Mangue Beat”. Chico, pernambucano que misturava maracatu com hip-hop, tem um clipe em que aparece vestido de lama, “homem-caranguejo” cantando chafurdado até os joelhos. Arte que denunciava as condições de vida da gente das palafitas nos mangues de Recife, mergulhados na lama a catar caranguejos para comer. Uma de suas letras mais expressivas dizia: “Estou enfiado na lama. É um bairro sujo onde os urubus têm casas e eu não tenho asas.”  

Estão mergulhados na lama de Brumadinho, quase três centenas de corpos sem asas. Difícil que sejam todos encontrados para os rituais de limpeza e pranto que a dignidade requer dos enlutados. Isso sem falar nos animais soterrados. Sem falar nos lares destruídos. Na flora destroçada. Nos índios sem peixe. O meio ambiente aviltado.

E lama aqui é lixo, fique claro. Rejeito de minério é lixo tóxico e assassino que não tem como ser descartado. Lixo em barragens precárias, de soterrar gente. Barragens dadas por “normais” e “seguras” em laudos irresponsáveis ou imperitos, que vão assassinar pessoas! No país da tragédia do Morro do Bumba, em Niterói, que era uma favela construída sobre um lixão, fica claro o lugar que, para poderosos, merecem os humanos desfavorecidos: o lixo.

Ainda bem que Bolsonaro teve lampejo de clarividência e desistiu de extinguir o Ministério do Meio Ambiente. Que estreia já em jogo de gente grande, demandado para hercúleas responsabilidades. Que as cumpra! E que Bolsonaro caia na real de vez, abraçando a ecologia, inclusive recusando a ideia de abrir novas usinas nucleares, inseguras e produtoras de lixo radioativo, de descarte mais impossível que rejeitos de minério. 

Enquanto isso, o país soterrado na lama podre é comandado de um quarto de hospital. Só circunstância de saúde do presidente que tentaram assassinar, eu sei. Mas parece uma metáfora do Brasil real, enlameado, doente e caótico.

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