Debate sobre o Bicentenário: uma contribuição

19/03/2022 18:18
Por Gastão Reis

Tive a oportunidade de assistir a um debate sobre o bicentenário da independência do Brasil. Foi uma iniciativa do Canal Livre que contou com a presença de historiadores renomados como Fernando Mitre, Heloisa Starling, Lilia Schwarcz, e os jornalistas Gilberto Smaniotto e Rodolfo Schneider, este como moderador. Nem sempre quem assiste tem a oportunidade de contra-argumentar por razões compreensíveis dada a exiguidade do tempo concedido aos próprios convidados. Vai aqui uma contribuição minha para trazer novos elementos ao debate que não foram ventilados pelos ilustres debatedores.

O moderador iniciou passando a palavra ao jornalista Gilberto Smaniotto, visivelmente entusiasmado com as informações que vem levantando sobre o período da independência. Ele fez ressalvas críticas ao pagamento de dois milhões de libras esterlinas pelo reconhecimento da independência por Portugal, e ao ouro que nos teria sido surrupiado ao longo do ciclo do ouro no século XVIII. Mas também se diz encantado com fatos que só agora começam a chegar ao grande público, como a intensa participação popular no grande evento nas praças públicas em que os letrados liam para quem não sabia ler.

Segundo ele, teríamos pago por nossa independência. Mas a verdade é que houve lutas e combates acirrados, e não só na Bahia. Foram fatos concretos com reconhecimento tardio, mas importantes para entender o que se passou. Não foi uma independência paga. Ele deixou ainda passar em branco o fato de que a produção de ouro ao longo do século XVIII oscilou entre 15 e 20 toneladas anuais. E o que se produziu do metal nos últimos dois séculos, desde 1822 até hoje, tem sido muito maior do que o que foi levado para Portugal naquele ciclo. Nos últimos anos, produzimos em média 81,2 ton/ano. Ou seja, não foi por falta de ouro que o país tem tido um crescimento pífio.

A historiadora Heloísa Starling deu um tom civilizado ao debate ao pedir que as perguntas difíceis fossem dirigidas à Lilia Schwarcz e as outras para ela. Não foi bem isso que aconteceu, mas o debate foi cortês, e pleno de conteúdo. Heloisa bem sabe que senso de humor desarma os espíritos.

A primeira pergunta foi: Quem teve peso na proclamação da independência?

Lilia Schwarcz chama a atenção para o excessivo peso dado ao Sudeste no processo. Reclamou espaço para outros protagonistas que realmente existiram. Critica a lenda dourada de Dom João VI, esquecendo que ele trouxe para cá 200 milhões de cruzados, cerca de metade (!) do meio circulante português de então. (Vide História Econômica do Brasil (1500-1820), de Roberto Simonsen, página 392, sexta edição, Companhia Editora Nacional). E, ao regressar, levou de volta 50 milhões. Saímos no lucro. E isso sem mencionar a grande obra civilizatória realizada dando um salto qualitativo no processo de desenvolvimento do País. Dourada ou não, D. João VI não é apenas uma lenda.

Heloisa Starling responde em direção diferente. Ela nos relembra que havia vários Brasis na época. Como administrar um evento da envergadura da independência numa sociedade que não era letrada? E aí ela nos relembra dos muitos panfletos escritos sobre o assunto por patriotas (termo de então para quem exercia sua cidadania) que os pregavam nas portas das casas com cera de abelha. Houve mesmo uma poesia de uma jovem baianinha a favor da independência sob a forma de panfleto. “Parece que não havia povo!”, é a crítica pertinente de Heloisa à narrativa oficial, que costuma passar por cima disso tudo. A própria Lilia Schwarcz reconhece que os próprios escravos esta-vam a par dos acontecimentos, o que confirma a ampla participação popular.

Foi levantada por Fernando Mitre a questão do papel de José Bonifácio, o Patriarca da Independência. Suas ideias influenciaram Dom Pedro I? Segundo Mitre, com razão, José Bonifácio foi uma figura à frente de seu tempo. Teve influência, pois ambos eram contra a escravidão. Bonifácio defendia o respeito à natureza e aos índios e questionava a estrutura fundiária do país. O mérito de Pedro I foi ter feito uma opção constitucional ao limitar o poder absolutista.

Quanto à constituição de 1824, Lilian Schwarcz e os demais reconhecem que teve seus méritos. Como sempre, as críticas bateram na tecla de ter sido outorgada e não promulgada pela Constituinte, que foi dissolvida por D. Pedro I. Fernando Mitre critica a frase de Pedro I sobre a constituição quando este a aceita se “se for digna do Brasil e de mim”. A sutileza da frase não é revelada. Ele colocou o Brasil antes de si mesmo. Foi a mesma reação quando quiseram lhe atribuir o título de protetor e defensor perpétuo do Brasil. Ele aceitou o de defensor, mas não o de protetor. Para ele, o Brasil sempre seria capaz de se proteger com o escudo de seu próprio povo. Aliás, a América Latina teve vários protetores, que sempre acumularam o título de ditadores de seus países…

Houve um certo consenso entre os entrevistados sobre o caráter conservador da constituição de 1824 e até do próprio José Bonifácio, já preocupado com a participação política de militares (e ditadores) na América Hispânica de seu tempo. Não levaram em conta que o poder moderador foi usado, praticamente sempre, para controlar o andar de cima, e não contra o povo. A despeito de a lisura do processo eleitoral deixar a desejar, o poder moderador teve o mérito de permitir a alternância no poder entre conservadores e liberais. O historiador José Murilo de Carvalho nos alerta sobre este ponto fundamental na construção de uma autêntica democracia.

O entusiasmo da Lilia Schwarcz com a revolta dos escravos do Haiti, que se livraram dos senhores franceses, é compreensível, mas merece uma qualificação fundamental. E o que veio depois? Certamente, foi uma triste “linhagem” de ditadores que se substituíram ao colonizador francês. Cabe registrar, na mesma linha, o que ocorreu em longos períodos (ditatoriais) de nossa história sob o regime republicano desde 1889.

Encerro aqui minha contribuição focada nas lacunas históricas não-mencionadas pelos debatedores, que merecem aplausos e serem assistidos.

(*) Palestra do autor, “O Legado da Herança Luso-Afro-Indígena até 1889”, complementar ao artigo, gravada há três anos. Pode ser assistida clicando no link: https://www.youtube.com/watch?v=uuLxB3Mysns&t=129s

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