Deixem a língua fora da disputa

28/02/2021 08:00
Por Ataualpa Filho

A Língua é senhora de si. Permite a criação de infinitos neologismos, mas mantém as rédeas de suas próprias regras. Até a presente data, na Língua Portuguesa, as flexões de gênero continuam e vão permanecer binárias por longo tempo: masculino e feminino – é válido ressaltar que gênero e sexo são designações diferentes.

Há mais de três décadas, venho me dedicando ao estudo da Língua Pátria. E, durante esse período, já ouvi muitas indagações esdrúxulas. Mas, nos últimos cinco anos, quando falo das concordâncias nominais, sempre aparece alguém querendo saber se existe alguma flexão que possa ser empregada para quem não se define nem como masculino nem como feminino.

Diante da seriedade do assunto, fico apenas na instância linguística para não cair no minado campo da sexualidade.Evito polêmicas. Trato do assunto tecnicamente. Começo pelas diferenças entre sexo e gênero:

 A palavra “pedra” pertence ao gênero feminino, mesmo sem ter sexo. “Guaraná” é do gênero   masculino, apesar de terminar em “a”. E o “a” de “menina” é uma desinência de gênero, não importa se ela “veste azul ou rosa”. A palavra “criança” também termina em “a”, porém é usada para designar tanto o masculino como feminino, é um caso de substantivo sobrecomum.

Todos sabem que a palavra “menos” é invariável. Não há, no dicionário, o termo “menas”. No entanto, ele caiu na boca do povo como flexão feminina. Apesar de todas as críticas, ainda sobrevive. Não é raro ouvir: “menas pessoas”. Nessa mesma esteira, temos o uso indevido da palavra “meia” como advérbio. Ouve-se a expressão “meia cansada”, quando o correto é: “meio cansada”. O advérbio é invariável.

Quando estava iniciando no magistério, quis militar em defesa das semivogais, porque as considerava em processo de extinção na linguagem oral. Ficava incomodado quando alguém chamava de “bebedor” o “bebedouro” e a “Mangueira” de “manguera”. “Couro” sem a pronúncia da semivogal torna-se outro vocábulo: “coro”. O casaco é de couro, não de coro.

Tem-se notícia de que já foram contabilizadas 37 denominações de gêneros, tendo como base as (p)referências sexuais que não estão vinculadas a fatores biológicos. Nenhuma língua vai criar uma flexão tão abrangente assim para atender às denominações que surgem. Querer impor uma mudança linguística para contemplar a tais denominações, é malhar em ferro frio. Melhor concentrar as energias nas questões sociais e políticas do que enveredar por lutas vãs como essa de querer alterar as regras gramaticais para agradar às alternativas dos desejos sexuais.

Hoje, ao falar dos casos de “concordância nominal”, ouço, com frequência, a seguinte frase: “até a gramática é machista” – isso ocorre quando tento explicar o emprego do adjetivo no masculino e no plural para qualificar palavras de gêneros diferentes. “Nesta sala, há alunos e alunas atenciosos”.

O uso preferencial do masculino nas expressões genéricas para designar uma espécie consiste em um mecanismo linguístico de caráter universal.  Metonimicamente isso ocorre sem imposições ideológicas uma vez que as línguas se estruturam em estágios primitivos da sociedade.

Na atual conjuntura, precisamos priorizar as lutas e concentrar as nossas forças em bandeiras que necessitam de ações emergenciais, pois a fome, independente de sexo, alastra-se pelo mundo.

A língua não puxa gatilho. É uma aliada, uma ferramenta de mudança. Acompanha as evoluções sociais. Deixe-a em paz. Os direitos humanos merecem mais atenção. A luta contra as discriminações requer urgência.

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