Delírio de fraude mantém acesa a chama de Trump

03/11/2021 17:08
Por Beatriz Bulla, correspondente / Estadão

Havia passado de 2 horas da manhã de 4 de novembro quando Donald Trump entrou em uma das salas de conferência da Casa Branca e anunciou: “Francamente, ganhamos esta eleição”. Nada na apuração parcial da disputa sugeria a vitória de ninguém, mas estava claro para seus assessores que Trump insistiria na estratégia anunciada meses antes – a tese que ficou conhecida como a “Grande Mentira”, uma espécie de delírio coletivo de que a eleição de 2020 havia sido fraudada em favor de Joe Biden para tirá-lo da presidência dos EUA.

As alegações de fraude foram sepultadas na Justiça, uma após a outra. No entanto, um ano depois, elas não apenas seguem vivas nos EUA, como alimentam o “trumpismo”, que domina os Partido Republicano, mesmo com a derrota do ex-presidente, e ameaça o futuro político do país.

Desde novembro do ano passado, pesquisas indicam que há uma parcela sólida da sociedade americana que acredita que o resultado de 2020, anunciado em 7 de novembro, após uma apuração arrastada, é ilegítimo. Em um dos levantamentos mais recentes, do instituto Morning Consult em parceria com o site Politico, 35% dos eleitores registrados disseram que a eleição deveria ser anulada.

O resultado é reflexo da desconfiança dos republicanos no sistema eleitoral – a despeito de os setores da população que costumam votar em democratas serem, historicamente, serem os maiores alvos das investidas para limitar o direito ao voto nos EUA.

CREDIBILIDADE

Se em 2020 o ataque à integridade da eleição servia para Trump como uma justificativa por seu mau desempenho nas pesquisas, em 2021 tornou-se um álibi para o ex-presidente seguir na arena política e manter acesa a chama de uma possível candidatura em 2024. É consenso entre especialistas que a sobrevida da “Grande Mentira” até hoje desafia a credibilidade das próximas votações, a sustentação democrática e a ordem social dos EUA.

“Ele criou uma profunda desconfiança da sociedade americana no governo e, mais especificamente, no processo eleitoral. É um desafio fundamental para os princípios americanos, para o que é mais básico na democracia: a confiança de que você pode votar em alguém que te representará”, disse Michael Traugott, cientista político e professor da Universidade de Michigan.

Mas as acusações de fraude eleitoral feitas por Trump não se limitam mais à disputa de 2020. “Eu não acredito na integridade das eleições do Estado de Virgínia. Muitas coisas ruins aconteceram e estão acontecendo”, declarou Trump, na segunda-feira, véspera da eleição para o governo estadual. A votação, realizada ontem, foi a primeira disputa local em que seu poder junto ao eleitorado republicano foi testado.

Dos eleitores democratas, 76% acreditam, com mais ou menos confiança, que as eleições legislativas de 2022 serão livres e justas. No grupo dos republicanos, apenas 48% pensam a mesma coisa. Mais da metade dos eleitores registrados nos EUA (entre republicanos, democratas e independentes) diz que votaria em candidatos ao Congresso que defendem uma investigação dos resultados eleitorais do ano passado.

“Há uma perspectiva de que as eleições para o Congresso e presidenciais sejam canceladas em 2022 e 2024”, afirma Jennifer McCoy, professora de ciência política da Universidade do Estado da Geórgia e especialista em democracia e polarização. “Algumas das novas leis estaduais vão além da supressão de eleitores para realmente permitir que legislaturas partidárias, lideradas pelos republicanos, intervenham na administração eleitoral e cancelem a certificação do vencedor”, disse a especialista.

Sem uma justiça eleitoral centralizada, cada Estado americano organiza localmente seu sistema eleitoral. Neste ano, Estados como a Geórgia, que têm maioria republicana no Legislativo e, no ano passado, deram vitória a Biden, aprovaram leis que ampliam a esfera de influência partidária na certificação da eleição. “O destino de nosso sistema democrático dependerá desproporcionalmente dos tribunais nas contestações que surgirem entre as eleições”, afirma Traugott.

A multidão que frequenta os comícios de Trump, nos últimos três meses, passou a acreditar que as mentiras sobre a fraude na eleição de 2020 eram verdade, ainda que não haja nenhum lastro em fatos. A camiseta com a frase “Trump venceu” é quase um uniforme entre os participantes desses eventos.

RECONTAGEM

Até a época da posse de Biden, tribunais estaduais e federais já haviam analisado e rejeitado mais de 50 alegações de fraude de advogados de Trump. De lá para cá, a lista cresceu. No Arizona, senadores republicanos autorizaram uma auditoria paralela da votação – mesmo assim, até a apuração da empresa Cyber Ninjas, considerada um precedente perigoso para o sistema eleitoral americano, concluiu que Biden venceu a eleição no Estado.

Mesmo assim, o roteiro das aparições de Trump pelo interior do país mantém o ataque às urnas eletrônicas, ao voto pelo correio (amplamente difundido nos EUA e usado pelos dois partidos) e até a apresentação de powerpoint é usada para alegar que foi ele, e não Biden, o real vencedor das eleições.

Pesquisas indicam que esse pensamento predomina entre eleitores republicanos – e não só entre os simpatizantes de Trump. Menos de um terço dos eleitores do partido acredita que a disputa eleitoral do ano passado foi justa.

Em julho, a volta aos comícios de Trump foi marcada por um isolamento das figuras tradicionais do Partido Republicano. Restava a Trump a ala minoritária, que deu suporte a teorias conspiratórias e ficou ao lado do ex-presidente, mesmo após a insurreição do dia 6 de janeiro, como a deputada de primeiro mandato Marjorie Taylor Greene.

Mas não demorou para que figuras tradicionais do partido voltassem a aparecer ao lado do ex-presidente. No início de outubro, em Iowa, Trump teve apoio do senador Chuck Grassley, congressista há quatro décadas pelo Partido Republicano, e da governadora do Estado, Kim Reynolds.

Grassley, um dos senadores que precisou ser escoltado para deixar o Capitólio, em 6 de janeiro, durante ataque de extremistas pró-Trump, chegou a divulgar um comunicado crítico ao então presidente na época. Segundo ele, Trump usou retórica “extrema, agressiva e irresponsável”.

Na noite de 10 de outubro, Grassley subiu ao palco ao lado de Trump para aceitar o “total e irrestrito” apoio do ex-presidente à sua candidatura à reeleição. Em um curto pronunciamento, após trocar apertos de mão e sorrisos com Trump, Grassley falou sobre sua motivação.

“Eu nasci à noite, mas não ontem à noite. Se eu não aceitasse o apoio de uma pessoa que tem 91% de aprovação entre os eleitores republicanos em Iowa, não seria muito inteligente. Eu sou inteligente o suficiente para aceitar esse apoio.”

Os republicanos se inspiram na recontagem dos votos no Arizona e ensaiam fazer o mesmo em outros Estados e em outras eleições, desafiando a certificação oficial. Os comitês de ação política usados por Trump, movidos a propagandas sobre a “Grande Mentira”, declararam, em julho, ter arrecada US$ 100 milhões. E, pela sobrevivência política, figuras históricas do partido fecham os olhos para os ataques do ex-presidente ao sistema eleitoral.

Um ano depois, a “Grande Mentira” de Trump não só sobrevive como ajuda a movimentar a base do partido. O risco, diz a especialista Jennifer McCoy, é que o mundo volte a assistir cenas de violência nos EUA. “Eleitores que não confiam nas eleições serão mais receptivos a recorrer a outros meios. A democracia depende das eleições como um meio pacífico para resolver conflitos. Se um dos dois principais partidos políticos e três quartos de seus apoiadores não se importarem mais, ela pode facilmente se destruir.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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