Denúncia pode levar o Barcelona a perder as licenças da Uefa e da Fifa
Barcelona e Espanyol se enfrentaram na Supercopa da Espanha, em 2006. Além do fascínio proporcionado pela lendária equipe na qual Lionel Messi começava a despontar, uma polêmica marcou aquele jogo. Na época, parecia algo menor, a ser tragado pela inquestionável atuação do Barcelona. Quase 17 anos depois, no entanto, partidas como aquela, vencida por 3 a 0 pelo Barcelona, ressurgiram na memória da opinião pública com uma ponta de dúvida, que pode manchar toda a época sublime do time catalão.
Na ocasião, o Espanyol exigiu que o jogo fosse impugnado, alegando que o Barcelona escalou dois jogadores de forma irregular: Xavi e Puyol, desconvocados da seleção com o argumento de que estavam contundidos. Pela lei da Fifa vigente, afirmou a diretoria do Espanyol, o Barcelona teria de esperar cinco dias após a partida da Espanha para utilizar os jogadores. A reclamação do Espanyol foi rejeitada pela Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF).
Iniciada em maio de 2022, uma investigação do Ministério Público espanhol, divulgada no início deste ano, apontou que o Barcelona, entre 2001 e 2018, pagou 7,3 milhões de euros para a empresa Danisl 95, do ex-árbitro e vice-presidente do CTA (Comitê Técnico de Árbitros), da própria RFEF, José Maria Enríquez Negreira, de 77 anos, alegando estar pagando por serviços de consultoria.
Mas a partir das investigações, uma série de jogos como o da Supercopa de 2006, segundo os denunciantes, possivelmente foi influenciada por essa relação do clube com um alto funcionário que comandava as decisões relativas à arbitragem local. O que se fala na Espanha é armação de resultados.
“É uma denúncia grave e preocupante contra um dos maiores clubes do mundo, que fez história por jogar bonito e ganhar competições. Estão investigando se todos os milhões recebidos por esse senhor, durante anos, pelo Barcelona, não interferiram nos resultados de campo. Em relação à contratação de uma pessoa ligada à arbitragem para prestar algum tipo de serviço para um clube, o caso do Barcelona é único, até agora. A Espanha e a Europa veem com muita preocupação essa denúncia”, afirma o italiano Luca Caioli, correspondente em Madrid, da Sky Tg24.
Caioli explica que muitos clubes do continente, envolvidos em denúncias, acompanham com atenção o desfecho do caso do Barcelona. O caso está sendo chamado de “Barçagate”, numa alusão ao caso Watergate, escândalo político ocorrido em meados de 1972 nos Estados Unidos cujas investigações levaram à renúncia, em 1974, do então presidente Richard Nixon, do Partido Republicano.
“Há vários casos que apontam para um clima de grande desconfiança em relação à gestão de vários clubes. Todos estão atentos ao que está ocorrendo e querem saber quais serão as consequências, porque isso pode ser algo que, se houver uma punição, afetará todas as gestões dos clubes europeus”, afirma Caioli.
GOVERNO PREOCUPADO
Segundo a rádio Cadena Ser, da Espanha, documentos obtidos pelo Football Leaks mostram que o primeiro pagamento do Barça a Negreira, que assumiu a vice-presidência do CTA em 1994, ocorreu durante o mandato de Joan Gaspart, em 2001, e faturado através da Dasnil 95. O Barcelona está sendo denunciado por corrupção continuada nos negócios, falsificação de documentos e má administração nos pagamentos a Negreira.
O CTA é responsável pela organização de todo o sistema de árbitros do futebol nacional, o equivalente à Comissão de Arbitragem da CBF. Na Espanha, no entanto, há uma peculiaridade na legislação desportiva, na qual federações e ligas têm autonomia, mas com o controle do governo em relação à legislação. O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, cobrou investigações.
“A Federação Espanhola de Futebol vai abrir investigações sobre o caso. Vamos esperar que os órgãos encarregados da boa governança da LaLiga espanhola esclareçam a situação que por desgraça estamos conhecendo pelos meios de comunicação”, afirmou Sánchez, em fevereiro, incomodado com a situação do Barcelona.
“Se estes fatos se confirmarem, são gravíssimos e prejudicam o futebol espanhol e o desporto como um todo. E os órgãos federativos e governamentais estarão presentes, em defesa do bom nome dos atletas espanhóis”, ressaltou o ministro da Cultura e Esportes da Espanha, Miquel Iceta. Um conselho de ministros também analisa o processo. O caso já não está mais apenas na esfera esportiva.
A combinação entre o Barça e o ex-árbitro, segundo os promotores, era de que Negreira “na qualidade de vice-presidente da CTA e a troco de dinheiro, realizasse ações com tendência a favorecer o Barcelona na tomada da decisão dos árbitros nas partidas disputadas pelo clube, e, assim, nos resultados das competições”.
Segundo o texto apresentado à Justiça, Negreira emitia notas fiscais de cobrança ao Barcelona sem um serviço específico ou “prestação de assessoria real”.
NA DEFENSIVA
O Barcelona se defende afirmando que Negreira foi contratado como consultor técnico externo, para ensinar questões de arbitragem a jogadores da base e posteriormente produzir relatórios a respeito da arbitragem direcionados à equipe profissional. Tanto o clube quanto Negreira garantem que jamais houve algum tipo de favorecimento nos jogos.
Somente entre 2016 e 2018, a investigação rastreou ao menos 33 depósitos, totalizando 1,4 milhão de euros, feitos pelo Barcelona a Negreira. O filho do ex-árbitro, Javier Enríquez Romero, também está sendo investigado, inclusive por uma suspeita de ter vazado, para o Barcelona, o nome do árbitro que apitaria a final da Copa do Rei de 2016-17, contra o Alavés.
RISCO DE PUNIÇÃO
A posição da LaLiga, entidade que organiza o Campeonato Espanhol, é a de que o Barcelona não pode ser punido esportivamente porque, de acordo com a Lei dos Esportes local, o prazo de três anos para a denúncia expirou.
“Na competência da LaLiga e da Federação, entidades privadas representantes do futebol espanhol no sistema Fifa, e do Conselho Superior de Deportes, entidade pública, por força do legislação espanhola, a conduta do clube não deverá ter punição nacional, devido à prescrição, a perda do direito de punir pelo prazo decorrido”, defende Luiz Fernando Aleixo Marcondes, mestre em Direito Desportivo pela Universidade de Lérida, na Espanha.
A LaLiga, diz Marcondes, é uma entidade privada vinculada ao sistema Fifa através do reconhecimento da RFEF. Ambas, apesar de terem autonomia, são vinculadas ao Conselho Superior de Desportes, órgão máximo dos Esportes na Espanha, que definiu essa legislação. Justamente por isso, em âmbito europeu, o Barcelona pode pegar pesadas penas, completa Marcondes.
“Entretanto, a Fifa e a Uefa, por força dos seus estatutos e normas de ética e disciplina, também têm competência para analisar o caso. A Uefa, por exemplo, poderia analisar o caso sob a luz do seu regulamento disciplinar, que prevê como pena mínima para o clube uma simples reprimenda, podendo chegar à desclassificação de competições em andamento e futuras ou até a retirada da licença”.
Na hipótese de uma retirada da licença, o Barcelona perderia sua vinculação ao sistema Uefa/Fifa. Isso só ocorreria após o trânsito em julgado do processo, que incluiria a possibilidade de recurso do clube à Corte Arbitral do Esporte (CAS). “Em tese, para voltar, o clube precisaria passar por nova filiação ao sistema Uefa/Fifa através de também nova filiação ao sistema da RFEF. Mas sabemos que se trata de uma pena extrema, que dificilmente seria aplicada no caso concreto”, observa Marcondes.
O advogado diz ainda que, caso sejam considerados culpados, os dirigentes acusados também sofrerão punições. “Para as pessoas envolvidas, a pena mínima seria também uma simples reprimenda, podendo chegar à proibição de exercer qualquer atividade relacionada ao futebol”.
Além de Negreira, foram denunciados Sandro Rosell e Josep Maria Bartomeu, ex-presidentes do clube, e os executivos Oscar Grau e Albert Soler. O acordo com o Barcelona, segundo a Cadena Ser, foi encerrado em 2018, na administração de Bartomeu, o que teria irritado Negreira.
CORRUPÇÃO NO FUTEBOL
Para o correspondente espanhol Caioli, esse caso reflete um espectro nebuloso que assola o futebol europeu. Todo o “glamour”, organização e qualidade técnica têm, em muitas ocasiões, servido para ocultar crimes como lavagem de dinheiro, sonegação, combinação de resultados e relação promíscua com o poder público.
O próprio Real Madrid, que soltou nota pedindo que o Barcelona seja investigado, também já foi alvo de uma grave denúncia. Em 2001, o clube foi criticado por realizar uma operação urbana, considerada por muitos um escândalo. Vendeu terrenos em Castellana, que, de acordo com o jornal La Vanguardia, foram expropriados durante o regime do ditador Francisco Franco (1936-1975) para que o clube construísse instalações esportivas sem fins lucrativos.
Acusado, no entanto, de descumprir o acordo inicial, o clube madrilenho comercializou a área, onde foram construídas quatro torres comerciais. E construiu a Cidade Real Madrid em Valdebebas, em outro local, inaugurada em 2005.
Com a operação, o Real obteve um gigantesco lucro, pagando suas dívidas e iniciando uma era de investimentos enormes no futebol, que o levaram a formar a equipe dos “galácticos” e a ajudar a inflacionar o futebol mundial. O negócio ocorreu na primeira gestão de Florentino Pérez, atual presidente do Real Madrid.
“No começo, isso revoltou sindicatos, boa parte da opinião pública, pessoas que se sentiram prejudicadas, mas depois todos pareceram se conformar”, lembra Caioli.
Na Inglaterra, clubes como o Manchester City estão sendo acusados de cometer crimes financeiros, como registros falsos de finanças. O clube também é visto como uma fachada para melhorar a imagem do autoritário regime dos Emirados Árabes Unidos, proprietário do City.
A mesma suspeita envolve o Newcastle, que se tornou propriedade de um fundo de investimentos comandado por Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita, outra ditadura, e acusado de ordenar o assassinato do jornalista opositor Jamal Khashoggi, em 2018.
Na França, a administração do Paris Saint-Germain é vista com desconfiança pelo fato de o clube ser propriedade do governo do Catar, outro país governado por uma ditadura implacável. Recentemente, a italiana Juventus foi punida – mais uma vez em sua história -, desta vez com a perda de 15 pontos no Campeonato Italiano por causa de fraudes fiscais nas contratações de jogadores.
“O futebol europeu está sendo controlado por clubes bilionários e até por Estados. Cada vez mais tem recebido aportes com cifras muito grandes. O dinheiro tem se tornado o protagonista. Neste momento, muitos clubes consideram que podem tudo, os limites se perderam. Isso é perigoso, o futebol europeu se tornou uma grande bolha e não se sabe quando ela irá explodir”, completa Caioli.