Desacertos e interpretações duvidosas
Certa feita, Millôr Fernandes, com a verve que lhe era peculiar, afirmou que “o passado é imprevisível”. Onde se lê passado, fica a sensação que deveria estar escrito futuro. Como ele não é dado a proferir obviedades, é preciso cavar fundo para buscar o sentido mais profundo, indo além da tirada espirituosa.
Um fato histórico pode ser relatado sem ser fiel ao que aconteceu. E ainda existem outras situações em que o passado pode ser avaliado de modo diferente. A burrice, por exemplo, pode dar as caras quando, em determinada época, se tem a clara percepção de que existem duas opções viáveis, e a decisão pela pior acaba sendo tomada.
Foi Barbara Tuchman, em seu magistral “A Marcha da Insensatez”, quem estabeleceu as bases da chamada história alternativa, ou seja, aquela que poderia ter acontecido se o bom senso houvesse prevalecido. Dá dois exemplos conhecidíssimos: a guerra do Vietnã e a de Tróia. No primeiro, temos a guerra popular em que ou bem eliminamos o povo adversário ou perdemos a guerra. Como a guerra nuclear estava fora de questão, os EUA foram derrotados. Na segunda, bastaria ter deixado o cavalo de madeira do lado de fora. O presente de grego seria recolhido mais cedo ou mais tarde. Ou seja, desativado.
No Brasil, temos vários exemplos de desacertos, ou interpretações duvidosas, ou ainda fatos simplesmente desconsiderados sob nosso nariz.
É curioso que passe em brancas nuvens o fato histórico referente à maior vitória já havida no país sobre a redução da desigualdade ocorrida ao longo do século XIX. Durante o Império, o grande avanço das alforrias e a assinatura da Lei Áurea, em 1888, seguida à do Ventre Livre, em 1871, ambas assinadas pela Princesa Isabel, retiraram um enorme contingente de brasileiros do salário zero para um valor positivo. As técnicas modernas de medição, se aplicadas ao fenômeno, certamente refletirão essa expressiva redução da desigualdade.
A lição que todo esse processo nos deixa é que foi necessária uma luta de décadas, em que estava em andamento um processo de inclusão progressiva dos negros manifesta em sua ascensão social no jornalismo, na advocacia, na medicina, na engenharia, na literatura e até nos bailes no Paço Isabel, atual Palácio Guanabara, em que ela tinha entre seus convidados negros com quem inclusive dançava, uma atitude que escandalizava a classe escravocrata.
Após a chegada da malfadada república, fortaleceu-se a doutrina da eugenia e do embranquecimento da população para que o País conseguisse atingir pleno desenvolvimento. Na famosa Escola Normal do Rio de Janeiro, a presença costumeira nas fotos de formatura de negros, mulatos e professores de origem africana, inclusive nas funções de diretores, começaram a rarear. A partir de 1920/1930, essas mesmas fotos começaram a embranquecer, refletindo a exclusão progressiva dos negros da ascensão social pela educação. Estudos e pesquisas da USP vêm confirmando esse processo deletério.
O mecanismo de inclusão socioeconômica da população de origem africana, além da educação, incluía o projeto, engavetado pela república, de assentamento dos libertos ao longo das ferrovias para oferecer-lhes ocupação e renda. O descaso sistemático foi de tal ordem que o Brasil ocupa hoje os primeiros lugares no mundo em matéria de desigualdade. Pior: os avanços conseguidos ao longo do século XIX foram revertidos. Caminhamos em direção oposta, agravando sobremaneira o problema da desigualdade.
Os permanentes solavancos políticos da república brasileira impediram que houvesse uma benfazeja rotina no combate à desigualdade. O arcabouço político-institucional, sempre incerto, bloqueou a continuidade de políticas efetivas de redução da desigualdade, que demandam décadas para seu êxito. Dizem que os portugueses têm saudade do passado glorioso, e que, no Brasil, temos saudades do futuro, aquele que ainda não chegou novamente.
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