Desembargador deu liminar sem ler para favorecer procurador, diz PF

26/out 07:36
Por Rayssa Motta, Fausto Macedo e Pepita Ortega / Estadão

A Operação Última Ratio, da Polícia Federal, indica que o procurador de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso do Sul Marcos Antônio Martins Sottoriva – que também é fazendeiro – é suspeito de se valer de um esquema de tráfico de influência no Tribunal de Justiça estadual para obter uma liminar favorável a seus interesses na compra de uma fazenda de R$ 5 milhões.

O Estadão pediu manifestação do procurador Marcos Sottoriva, mas não houve resposta até a publicação deste texto.

A decisão foi assinada pelo desembargador do TJ-MS Marcos José Brito Rodrigues, mas a PF suspeita de que ele nem sequer se deu ao trabalho de ler os autos e de fazer o despacho. O magistrado teria encarregado um assessor de redigir o texto da liminar e assinar o documento por ele.

A Operação Última Ratio foi deflagrada nesta quinta-feira, 24, por ordem do ministro Francisco Falcão, do Superior Tribunal de Justiça. Cinco desembargadores – Marcos Brito é um deles – foram afastados das funções por 180 dias e vão usar tornozeleira eletrônica. Um sexto desembargador, aposentado, também é investigado – em sua casa, a PF apreendeu R$ 3 milhões em espécie. O TJ-MS disse que “os fatos ainda estão sob investigação, não havendo, por enquanto, qualquer juízo de culpa definitivo”.

Sottoriva foi alvo de buscas. Os investigadores avaliam que o episódio da liminar, ocorrido em 2020, representa uma “decisão judicial em favorecimento indevido em razão do cargo de uma das partes”. Consideram que o procurador foi beneficiado por “subterfúgio criado pelo juízo para obter vantagem em questão negocial em clara violação aos princípios da imparcialidade e da equidistância da jurisdição”.

Diálogos

As suspeitas que recaem sobre o procurador e o desembargador partem de mensagens recuperadas pela PF e que “demonstram fatos bastante graves”. Em um dos diálogos, Sottoriva envia ao magistrado o número de um recurso ajuizado por ele contra uma decisão de primeiro grau que negou seu pedido no caso da fazenda. O procurador pedia a suspensão das parcelas da compra, sua manutenção na posse da área até a devolução dos valores que já havia repassado e a devolução de três imóveis que tinha entregado como parte do pagamento. No mesmo pedido, Sottoriva incluiu a suspensão de aluguéis referentes a um imóvel que ele havia transferido como pagamento, mas seguia usando.

No processo, a outra parte sustentava que ele não apenas é procurador, mas pecuarista. “Tem pleno conhecimento dos termos do contrato e do mercado do boi gordo, não podendo suscitar ignorância ou desconhecimento do negócio que celebrou, sendo que o contrato foi redigido pelo filho dele, que é advogado.”

Segundo a PF, sem ter acessado os autos, o desembargador Marcos Brito pediu a seu assessor que providenciasse a elaboração de liminar, nos termos que atendessem às demandas do procurador. E o orientou a assinar sua decisão.

Genérica

Conforme os investigadores, o magistrado “não elaborou a decisão, não a conferiu e nem assinou”, e sua atuação se limitou a “uma ordem a assessor que favorece indevidamente um procurador de Justiça”. O inquérito diz que a “fundamentação para a concessão da liminar é genérica, limitando-se a citar textos de dispositivos legais”.

A investigação aponta que, depois da concessão da liminar, Sottoriva enviou mensagens a Marcos Brito informando sobre o acordo selado. “Graças a Deus e ao seu trabalho… acabamos por fechar um acordo… consegui alongar a dívida em mais uma parcela (…) Obrigado de coração. Boa Páscoa na bênção de Deus e de seu filho Jesus Cristo.”

Investigação aponta filhos de magistrado como negociantes

Os advogados Rodrigo Gonçalves Pimentel e Renata Gonçalves Pimentel, filhos do desembargador Sideni Soncini Pimentel, são considerados pela Polícia Federal atores-chave do suposto esquema de venda de decisões judiciais no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, investigado na Operação Última Ratio. Eles são apontados no inquérito como intermediadores das negociações. Mensagens trocadas pelo advogado revelam combinações com magistrados e a certeza de que as decisões compradas seriam proferidas nos termos encomendados, conforme a PF.

Em um dos diálogos com o também advogado Félix Jayme Nunes da Cunha, Rodrigo promete: “Vai sair hoje! Certeza! Perto das 6 da tarde! Pode falar para seus parceiros aí até o horário pra ver que temos o controle.” Segundo a PF, a mensagem faz referência a uma decisão do desembargador Luiz Tadeu Barbosa da Silva, assinada em 7 de março de 2016, que autorizou o levantamento de valores depositados judicialmente.

Em outra conversa, Cunha questiona sobre mudanças no voto de um magistrado, dando a entender que a decisão havia sido combinada previamente. Rodrigo responde ao advogado: “Ele mudou tudo. Deixei a melhor estratégia para ele. Fica tranquilo”.

Mensagens trocadas entre Félix Jayme Nunes da Cunha e seus clientes também ajudam a reconstituir como funcionava o suposto esquema.

Em uma das conversas, em 2016, com Jun Iti Hada, então prefeito de Bodoquena, o advogado encoraja seu interlocutor a comprar uma decisão em um processo criminal: “Tá barato prefeito. Vale”.

O prefeito pede para parcelar o pagamento em duas vezes, mas o advogado afirma que “não dá, prefeito. É muita gente envolvida para dar certo”, e complementa: “Vai ficar sem antecedentes.”

O Estadão tentou contato com a defesa dos envolvidos, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

Apuração

A Polícia Federal diz acreditar que o uso de familiares para negociar a venda de decisões e os pagamentos pelas sentenças era praxe no esquema. As suspeitas envolvem sobretudo os filhos dos desembargadores, em sua maioria advogados que, segundo a PF, usariam os escritórios para receber os pagamentos sem chamar a atenção dos órgãos de investigação.

Em nota, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul informou que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou “medidas direcionadas exclusivamente a alguns desembargadores, magistrado e servidores” e que elas foram “regularmente cumpridas, sem prejuízo a quaisquer dos serviços judiciais prestados à população e que não afetam de modo algum os demais membros e componentes da Justiça sul-mato-grossense”.

“Os investigados terão certamente todo o direito de defesa e os fatos ainda estão sob investigação, não havendo, por enquanto, qualquer juízo de culpa definitivo. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul seguirá desenvolvendo seu papel de prestação jurisdicional célere e eficaz, convencido de que aos desembargadores, magistrado e servidores referidos, será garantido o devido processo legal”, diz a manifestação da Corte estadual.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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