Desfile em SP é marcado por emoção, crítica social e referências culturais

23/04/2022 10:15
Por Priscila Mengue / Estadão

A primeira noite de desfiles do grupo especial de São Paulo foi marcada pela emoção e alegria do retorno ao sambódromo após mais de dois anos. Os enredos – em grande parte – apresentaram críticas sociais e referências culturais ou religiosas. As arquibancadas estavam cheias, mas os ingressos não chegaram a esgotar.

Tucuruvi aposta em carnaval crítico

A Acadêmicos do Tucuruvi voltou ao grupo especial com o samba-enredo “Carnavais… De lá pra cá, o que mudou? Daqui pra lá, o que será?”, cantando “O samba não acabou, nem vai acabar. Sou resistência, e você tem que respeitar”.

Na comissão de frente, 14 bailarinos faziam movimentos com as saias em que mostravam escudos das escolas paulistanas do grupo especial, entre elas, Barroca Zona Sul e Rosas de Ouro. Em outro movimento, formavam a frase “sou resistência”.

Logo atrás, veio a ala das baianas, na qual desfilaram 45 mulheres, de 32 a 74 anos, e três homens, como nos primeiros carnavais paulistanos. O grupo vestia turbantes brancos floridos e havia um grande coração decorando os vestidos, com laços nas costas.

O abre-alas promoveu um retorno aos carnavais antigos, dos corsos, cordões e blocos de rua, propondo, dessa maneira, uma reflexão sobre a essência da folia. Nas laterais, destaques desfilaram sentadas sobre meia-luas suspensas e estandartes lembravam precursores do carnaval paulistano, como a Lava-pés e o Cordão da Barra Funda. Logo atrás, uma ala inteira trazia desfilantes com as cores e estandartes do Vai-Vai.

No segundo setor, a escola lembrou do carnaval na Avenida Tiradentes, palco dos desfiles antes da construção do sambódromo, nos anos 1990. O segundo carro trazia novamente baianas com vestes tradicionais em meio à chuva de papel picado e dentro de cabines que, ao fechar, exibiam os escudos de escolas de samba paulistanas.

No setor seguinte, a Tucuruvi levou o público ao carnaval mais recente, relembrando o início dos desfiles no Anhembi, das maiores escolas e até da criação das agremiações ligadas à torcidas de times de futebol. Em uma das alas, integrantes trajavam as cores da Gaviões. Em outra, cada folião saiu com dois escudos de cada lado da fantasia, como Dragões da Real e Vai-Vai.

A escola também refletiu sobre a festa atual, questionando se a essência da festa popular permanece. Um dos carros alegóricos trazia o “Cassino Carnaval”, com cifrões e livros com títulos irônicos como “Guia Prático de Monetização”, “Como Garantir o Seu Enredo Patrocinado” e “Como Conseguir Cortesia na Quadra”. Atrás, outros livros abertos questionavam: “Cadê o samba que estava aqui?” e trazia letreiros como “Imperdível”, “Promoção”, novamente questionando a influência do dinheiro no carnaval.

Por fim, o desfile encerrou com questionamentos sobre o futuro do carnaval, na busca da preservação da memória e no bom uso da tecnologia para incrementar a folia. No último carro, celebrava-se a Velha Guarda, simbolizando a preservação da memória.

Colorado do Brás homenageia Carolina de Jesus

A segunda escola a entrar no sambódromo foi a Colorado do Brás, que homenageou a escritora Carolina Maria de Jesus, mostrada como a “Cinderela do Canindé”, em referência ao bairro paulistano em que ela viveu e escreveu grande parte de seus primeiros diários. “Um grito de coragem para cantar o amor/ Respeita a minha cor”, dizia um trecho do samba-enredo.

O desfile se propôs a começar com uma saudação às pessoas marginalizadas. Entre elas, um homem vestido como pessoa em situação de rua ‘usava’ um cartaz de papelão que dizia que Carolina de Jesus era a sua voz. Carolina, uma ex-catadora de papelão, tinha a antiga ocupação lembrada no carro abre-alas, forrado com cerca de duas toneladas do material pintado.

No abra-alas, novamente, pessoas em situação de rua foram retratadas em meio a destaques. “O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”, “A fome dói” e “Posso ser você amanhã”. Atrás, alas como a das baianas lembravam das origens africanas de Carolina, descendente de negros escravizados no Brasil.

No segundo carro alegórico, Carolina apareceu com um livro na mão, enquanto uma destaque surgiu montada em uma borboleta gigante. Nas laterais, crianças e adultos fantasiados de corujas traziam livros com frases da escritora. Atrás do carro, artistas se penduravam em tecidos controlados por uma alegoria de palhaço gigante.

Haviam referências circenses e a girassóis, junto a uma passista fantasiada de Carolina de Jesus. Na sequência, o segundo casal de mestre-sala e porta-bandeira vestia roupas que lembravam papelão dourado, assim como a ala posterior também lembrou o período em que Carolina recolhia esse tipo de material.

O carro alegórico seguinte trouxe barracos como de uma favela, onde partes dos integrantes vestiam roupas simples e outras pessoas usavam saiotes de saco de lixo. No topo da alegoria, foram reproduzidos trechos de escritos de Carolina. No último abre-alas, Carolina apareceu em um grande castelo de alvenaria, em referência a outro de seus livros.

Mancha Verde tem problemas no desfile

O desfile seguinte atrasou. Com problemas técnicos, o abre-alas da Mancha Verde entrou no sambódromo depois de 12 minutos, porém, a escola não estourou o tempo regulamentar do desfile.

O enredo “Planeta Água” começou com uma comissão de frente com referências a Iemanjá, seguida de outros orixás desfilando no chão. No abre-alas, havia uma fonte em que a água jorrava da boca de alegorias de peixes. Telões exibiam quedas d’água, mesmo recurso utilizado em outro carro.

Já o mestre-sala vestia chapéu e tinha uma capa de rede de pescador, enquanto a porta-bandeira era Nossa Senhora Aparecida, alusão à história dos que pescavam a imagem da santa. A escola fez paradinhas longas, de mais de meio minuto, em que segurou o canto somente com o coro dos integrantes, que repetiam “Iemanjá, Iemanjá, rainha das ondas…” Outras escolas também utilizaram o recurso.

O segundo carro da Mancha trazia referências indígenas, com uma alegoria giratória próxima ao topo, com bustos de mulheres. Mais atrás, alas com plantas vitória-régia, peixes e pescadores, em que os desfilantes seguravam varas e ficavam dentro de canoas. Já o terceiro carro também exibia imagens do fundo do mar em telões, com uma grande sereia à frente e uma integrante como Iemanjá.

Tom Maior faz a alegria da madrugada

A quarta escola começou a desfilar a partir das 2h25. O enredo da Tom Maior fez uma transposição da história de “O Pequeno Príncipe” para o sertão nordestino, inspirada em um cordel de Josué Limeira e Vladimir Barros. Na comissão de frente, um tripé exibiu o desenho do chapéu, o que também pode ser interpretado como o de uma cobra que engoliu um elefante. Bailarinos vestidos de personagens dançavam na parte interna da alegoria, que remetia a um teatro.

Na ala seguinte, fantasias mostravam sanfoneiros e percussionistas com chapéus e roupas típicas de parte do sertão nordestino. O carro seguinte reuniu dez grandes bonecos de instrumentistas, assim como foliões com fantasias semelhantes. No topo, um Pequeno Príncipe com chapéu meia-lua e, atrás, um planetinha com aberturas, pelas quais componentes giravam sombrinhas que lembravam flores desabrochando.

Outra ala foi aberta com bandeirinhas juninas, seguidas de fantasias com personagens do livro em roupas de festa junina, repetindo coreografias como se estivessem em um arraial. Já o carro alegórico seguinte trouxe uma ave que movia o pescoço e os olhos, em cujas laterais estavam ciclistas em bicicletas antigas e mulheres em balanços suspensos.

O carro subsequente trouxe mais uma serpente articulada sobre um igreja colonial dourada, como se fosse um castelo, com estampas de chita. Atrás, uma ala com cactos e as baianas, no meio das quais o mestre-sala dançava com a porta-bandeira vestido de Pequeno Príncipe e com uma rosa vermelha na mão.

Na bateria, os ritmistas estavam trajados de pilotos de avião, como o autor de “O Pequeno Príncipe”, Saint-Exupéry. O último carro também trazia um elemento articulado, um carrossel com aviõezinhos.

Limpeza de óleo na pista e a Vila Maria

Na sequência, após atraso por óleo na pista deixado na passagem anterior, a Unidos de Vila Maria fez um desfile de reflexão sobre a solidariedade e a coletividade. A comissão de frente trazia um artista circense com um bambolê gigante e bailarinos que representavam diferentes sabedorias.

As baianas desfilaram com detalhes dourados e seguravam grandes vasos com flores copo de leite. Elas foram seguidas por uma ala de soldados romanos, que faziam coreografias com lanças – elas chegavam a reverberar no chão.

Os tempos antigos também foram tema do abre-alas, em que destaques laterais apresentaram uma coreografia que incluía simularem estátuas. “O mundo precisa de cada um de nós. A Vila é porta-voz”, cantava a escola.

O carro seguinte trouxe uma grande Nossa Senhora Aparecida, além de referências a diversas religiões, como candomblé e budismo. Ele foi seguido de alas em referências aos idosos e aos “notáveis”, médicos e professores. O terceiro carro trouxe uma favela colorida, com roda de samba, pipa, salão de beleza e um paredão de grandes caixas de som. Uma das alas trazia palhaços doutores, como das organizações de voluntários que atuam em hospitais.

O amor virtual foi lembrado na ala seguinte, com emojis e corações. Já a bateria veio de ritmistas franciscanos, com cabelo típico e chinelos. O último carro alegórico, por sua vez, trouxe a diversidade amazônica, com araras, plantas e outras referências.

No fim da madrugada, Tatuapé canta o café

Penúltima a desfilar, a Acadêmicos do Tatuapé trouxe a representação de um Preto Velho na comissão de frente para narrar a trajetória do café no Brasil. No abre-alas, a entidade era uma grande alegoria. Nas laterais do carro, passistas carregavam pipoca e outros elementos utilizados em cerimônias da umbanda.

No segundo carro, a referência foi a um casarão colonial de plantação de café. No topo, um homem branco segurava notas de dinheiro e uma xícara. O carro foi empurrado com ajuda de uma máquina, deixando marcas na pista do sambódromo do Anhembi – a escola demorou para avançar na avenida por dificuldades técnicas.

No penúltimo carro, foram exibidas referências diversas às artes, incluindo um Roberto Carlos sentado sobre um violão gigante. A escola chegou à concentração com “Acredita, Tatuapé” pelos microfones. “Eu acredito”, repetiam os integrantes emocionados.

Pela manhã, Dragões cantou a vida de Adoniran

Por fim, com desfile que começou às 6h45 (1h45 depois do previsto por conta do atraso no início do desfile e entre duas escolas, por causa de óleo na pista), a Dragões da Real encerrou o primeiro dia no Anhembi. O enredo abordou a vida e a obra do compositor Adoniran Barbosa, com um dos netos do artista (Alfredo Rubinato) entre os onze autores do samba-enredo.

A comissão de frente trouxe um homem vestido de Adoniran junto a um corpo de baile e um tripé no formato de uma caixa de fósforo (item no qual sambistas costumava batucar suas composições). A caixa se abria e se transformava em um bar. Logo atrás, as baianas desfilaram com broches com a foto do cantor paulistano.

Na ala seguinte, os desfilantes estavam de caveira, a qual era sustentada acima de cada um, alcançando cerca de três metros. No abre-alas, alegorias de esqueletos sambistas portavam instrumentos, virando da esquerda para direita.

O segundo carro trouxe um cortiço semelhante à Vila Itororó, localizada no Bixiga, bairro ligado ao cantor. Um trecho da coreografia mostrava um policial expulsando uma família do lar. Em outra, parte dos integrantes estava fantasiada de garçom e empurrava mesas de toalha listrada, estilo cantina, com cerveja, dominó e carteado.

Na sequência, alas lembraram escolas tradicionais de São Paulo: Vai-Vai, Camisa Verde e Branco, Unidos do Peruche, Neném de Vila Matilde e Unidos de Vila Maria. Já o último carro lembrou baluartes do carnaval paulista, como Seu Carlão da Peruche.

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