Destruição da arte e perseguição aos criadores são temas da peça ‘Um Picasso’

19/08/2021 08:20
Por Dirceu Alves Jr., especial para o Estadão / Estadão

Em 1983, o diretor Eduardo Tolentino de Araújo levou a peça Viúva, Porém Honesta, com os atores do Grupo Tapa, ao Festival de Teatro do Porto. Antes de pisar em terras portuguesas, ele enfrentou uma longa conexão na Espanha e aproveitou as horas disponíveis até o novo embarque para circular por Madri.

Durante essa tarde, Tolentino viu pela primeira vez Guernica, obra-prima de Pablo Picasso, que retrata o bombardeiro à cidade homônima durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), na época exposta em um anexo do Museu do Prado. “Na frente do quadro, duas mulheres, vestidas de preto, choravam compulsivamente, imagino que tenham perdido parentes no conflito”, relembra. “O impacto dessa cena jamais saiu da minha cabeça.”

A mesma Guernica, quase quatro década depois, pode ser considerada uma terceira personagem de Um Picasso, texto escrito pelo americano Jeffrey Hatcher, que ganha a primeira montagem brasileira através do Grupo Tapa. Sob a direção de Tolentino, Sergio Mastropasqua e Clara Carvalho interpretam respectivamente o pintor espanhol Pablo Picasso e a agente nazista Fraulein Fischer em um embate sobre o valor da arte. O espetáculo estreia no dia 19, de forma presencial, no Teatro Aliança Francesa. Apenas 52 das 226 poltronas serão disponibilizadas, e o público, de máscara, claro, se sentará a partir da terceira fileira.

Um Picasso foi adiado às vésperas da abertura das cortinas, prevista para 7 de abril de 2020, por causa da pandemia do coronavírus. Mais de um ano e quatro meses depois, a montagem ampliou significados. “A peça mexe com tudo o que vivemos durante uma guerra, no nosso caso também nessa pandemia, e retomar sessões presenciais carrega um significado político, oferecemos um antivírus contra a barbárie”, afirma o diretor, que encenou o mesmo texto em 2016 com a Companhia de Teatro de Braga, em Portugal, tendo no elenco os atores Rui Madeira e Ana Bustorff.

A história remete à perseguição aos criadores e como, em regimes ditatoriais, a destruição da arte pode ser uma meta política disfarçada de salvaguarda moral. Em 1941, durante a ocupação nazista em Paris, Picasso é interrogado por uma agente da Gestapo. A missão da mulher é conseguir a autenticação do próprio pintor em, pelo menos, um de três de seus trabalhos confiscados. A desculpa inicial de montar uma exposição logo se perde diante da real intenção: queimar obras que pertencem a um conceito de “arte degenerada”. Com o avanço do interrogatório, Fischer intima Picasso a assinar um documento em que renegue a autoria de Guernica. E, neste momento, o artista deixa o cinismo e usa a sensibilidade a seu favor para escapar da destruição.

Clara Carvalho sublinha que Picasso, apesar de nunca ter se engajado em guerras, lutou contra os opressores. “Guernica mostra como a arte é uma forma de combate, mesmo que não tenha nascido de uma atitude política explícita”, explica. Para Mastropasqua, a comunicação com os dias atuais é reforçada pela amplitude social da dramaturgia. “Se lá, na 2ª Guerra, eles viveram o auge do fascismo do século 20, hoje temos a pandemia e o fascismo digital, que persegue manifestações artísticas apoiado no ódio e na falta de informação”, define o ator.

Em uma das falas, Fischer questiona de que vale a beleza das sonatas de Schubert perto das bombas que caem e matam vidas. Tolentino declara que a desvalorização da arte é um processo iniciado há muitos anos que atinge níveis amplificados no Brasil que elegeu o presidente Jair Bolsonaro. “De um lado, temos os ditos conservadores que só enxergam valor na arte sacra e, de outro, uma parte da intelectualidade que confunde arte apenas com entretenimento e não entende que a cultura é o que nos constitui como povo”, analisa. “É o sintoma de uma série de radicalismos que tomou conta da sociedade, em que tudo que é metafórico passa despercebido.”

Confiante na cegueira daqueles que não têm capacidade para decifrar metáforas, Picasso criou Guernica em 1937 e, em mais uma das falas da peça de Jeffrey Hatcher, o artista transformado em personagem define sua obra: “Tenho mais orgulho de Guernica do que de qualquer outra coisa que fiz na vida (…). Quando as pessoas estiverem diante da sua grandeza, elas vão lembrar por que é que foi pintada”. Passados quase quarenta anos, Tolentino, que ainda guarda vivo o impacto da primeira vez diante da tela, entendeu bem estas palavras.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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