Dez anos de guerra na Síria causaram uma geração perdida e traumatizada

14/03/2021 07:40
Por Fernanda Simas. Colaborou Paulo Beraldo / Estadão

Em março de 2011, manifestantes saíram às ruas de Daraa para protestar contra o desemprego, a corrupção e a falta de liberdade no regime do presidente Bashar Assad. Em pouco tempo, o protesto se transformou numa violenta guerra civil que deixou um rastro de 400 mil mortos e mais de 5 milhões de refugiados – além de uma geração perdida e traumatizada.

“A vida parou.” “Antes, a Síria era o país mais bonito do mundo.” “Perdemos um monte de pessoas.” Os depoimentos de sírios que eram crianças ou adolescentes quando o conflito começou mostram que o impacto da tragédia, além do número de mortos, afetam o futuro e a saúde mental de uma geração.

Educação, emprego, condições básicas de saúde não são mais direitos garantidos para essa população, que pode ser a responsável pela reconstrução da Síria. Segundo estudo do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), 55% dos jovens (entre 18 e 25 anos de idade) tiveram de interromper os estudos e 53% perderam totalmente ou parcialmente acesso à saúde. Além disso, 49% perderam qualquer forma de renda.

“Não estamos falando mais em questão de anos, estamos entrando na segunda década do conflito. A maioria desses jovens perdeu a infância e a adolescência para a guerra. Essa geração vai carregar nos ombros a maior parte da responsabilidade e do trabalho de reconstrução quando o conflito acabar”, afirma o diretor-geral do CICV, Robert Mardini.

“Estava no nono ano quando os problemas começaram. Tudo estava bem até o dia 26 de novembro de 2011. Os dias seguintes foram de tensão em nossa vila e as escolas foram fechadas. Aquele foi o último dia em que abri um livro escolar, era um livro de ciências”, conta, em depoimento cedido pelo CICV, o sírio Ahmad, hoje com 24 anos.

Com 14 anos, ele viajou por 20 dias para deixar a Síria até o Líbano, onde vive hoje. “Andei por uma hora, depois subi em um caminhão de combustível. Não tinha muito espaço, então fiquei na parte de cima. Estava frio e ventando, podia sentir isso em meus ossos. Não achei que fosse chegar vivo.”

Youssef Ilia também deixou a Síria criança, com 13 anos. Viajou por Turquia e Grécia por quase um mês, ao lado de nove amigos. Com 35 kg a menos, chegou à Alemanha, onde se encontraria com o irmão mais velho. “Por três dias, éramos 45 ou 47 pessoas em um pequeno barco. Era realmente perigoso. Ficamos no mar por uma hora e meia até a fronteira grega”, lembra Ilia, que diz preparar sempre que possível um prato árabe para matar a saudade.

“Um em cada dois jovens sírios teve um parente ou amigo morto no conflito. Ao menos um dos pais de 10% deles foi morto ou ficou gravemente ferido. Mais da metade perdeu contato com a família. Além disso, a saúde mental foi afetada. Dois em cada três sírios sofrem de ansiedade e depressão”, afirma Mardini. Segundo o estudo do CICV, as quatro maiores necessidades dos jovens hoje são informação, emprego, educação, suporte psicológico e acesso ao sistema de saúde.

Em 15 de março de 2011, em meio à onda de protestos da Primavera Árabe, teve início o levante contra Assad. “A agenda inicial foi sequestrada por outras que tinham a ver com o lugar da Síria na região, sua posição estratégica ao longo das últimas décadas e a possibilidade de mudar isso. O que mexia com interesses dos EUA, das monarquias árabes e de Israel. Todo mundo quis aproveitar aquele momento para mudar a posição da Síria – e isso passava por derrubar o regime, o que já se mostrou impossível”, explica Salem Nasser, coordenador do Centro de Direito Global FGV-SP e especializado em questões relacionadas ao Oriente Médio.

A pandemia de covid-19 piorou a situação. Na Síria, 77% dos jovens afirmam não ter acesso a necessidade básicas, como água e luz. Bombardeios e confrontos ainda ocorrem, mesmo que menos frequentes nas grandes cidades e menos espetaculosos desde o enfraquecimento do governo de Assad e do fim do domínio do Estado Islâmico, que havia formado um califado na Síria e no Iraque.

“Atualmente, 13,4 milhões de pessoas na Síria precisam de ajuda humanitária e esse número vem crescendo nos últimos 12 meses. A situação continua se deteriorando. Hoje, 90% dos sírios vivem abaixo da linha da pobreza, com menos de US$1,25 por dia. Isso mostra como é importante injetar e fundos para criar programas de reconstrução e evitar perder totalmente essa geração”, diz Mardini.

O argentino Nicolas Marchi já trabalhou no Iraque e, desde junho do ano passado, está em Alepo, trabalhando em uma clínica ortopédica de reabilitação. Formado em fisioterapia e especializado em próteses, ele diz se sentir seguro, com os maiores enfrentamentos mais afastados da cidade.

“Meu trabalho é diretamente com gente que perdeu braços, pernas. Faço próteses para que as pessoas retomem suas vidas. Tenho sorte, vejo o melhor das pessoas, a capacidade que têm de superar, de seguir adiante depois de uma experiência dessa.”

Depoimentos

Fatima Moussad,

Refugiada que vive no Líbano

‘A situação nas tendas era de cortar o coração’

Fatima tinha 18 anos quando seu mundo mudou. Nascida em Damasco, ela deixou a Síria quatro anos após o início do conflito. Grávida, foi para um campo de refugiados em Arsal, no Líbano, com sua família, quando seu marido desapareceu na guerra.

Um mês depois de chegar, ela deu à luz. Seu filho passou a vida inteira em um campo de refugiados. “Vim para cá em junho e levou um mês, um mês e meio para eu dar à luz. Estava tão quente, eu pensei que o bebê não sobreviveria aqui. Eu disse que não ficaria. Queria voltar para a Síria, mas não me deixaram.”

Hoje, com 28 anos, ela tem um salão de beleza e não depende de ninguém financeiramente, se orgulha do trabalho que faz e se diverte com a rotina que tem.

“Dez anos se passaram desde o começo da crise. Desses, ficamos 4 anos na Síria e 6 aqui. Os quatro anos na Síria foram muito difíceis e aqui a situação é ainda mais complicada, as duas são desafiadoras. Durante esses dez anos de guerra, perdemos um monte de pessoas e nossas vidas mudaram completamente”, afirma Fátima.

Ahmad,

Estudante que fugiu com 13 anos

‘A vida não me faz mais rir, a vida parou’

Ahmad tinha 13 anos e cursava o nono ano quando a guerra síria começou. Ele precisou interromper seus estudos para fugir do conflito e, desde então, nunca mais frequentou uma sala de aula.

“Eu costumava contar piadas. Agora, não há mais espaço para risadas. A vida não me faz mais rir; não faço piadas e não vejo diversão. A vida parou, agora é uma rotina diária de acordar, sobreviver ao dia, e voltar a dormir.”

Para sair da Síria e chegar ao Líbano, onde vive desde 2014, ele viajou por 20 dias. Ahmad sofre de dores crônicas nas costas e braços em razão dos ferimentos no conflito. Ele não pode carregar peso e isso prejudica sua busca por empregos. Antes um talentoso jogador de xadrez, ele não vê mais um futuro para si.

“Não tenho mais nada dos pertences que eu tinha na minha casa. Eu tinha um guarda-roupas, uma mesa e um computador. Tínhamos 7 ou 8 tabuleiros de xadrez, um para cada pessoa da família. Eu era bom, um jogador competitivo, jogava com os adultos”, diz Ahmad, cabisbaixo ao lembrar que perdeu dois amigos próximos na guerra.

Youssef Ilia,

Refugiado que vive na Alemanha

‘Era o país mais bonito do mundo’

Após deixar os pais e o irmão mais novo para trás, Youssef Ilia deixou a Síria ainda criança. Viajou pela Turquia e a Grécia por quase um mês ao lado de mais nove amigos e perdeu 35 kg no caminho. Quando chegou à Alemanha se reuniu com o irmão mais velho e tentou retomar os estudos, mas não conseguiu.

“Eu queria ir para a universidade como uma pessoa normal, construir meu futuro e todo tipo de coisas. Mas infelizmente não foi possível.” Atualmente, com 23 anos, Youssef trabalha em uma oficina e tenta pensar no que fazer daqui para frente.

O jovem sírio cozinha pratos árabes com frequência para matar a saudade da terra natal e conversa com os parentes e amigos que ficaram na Síria quando há eletricidade na casa deles.

“Não interessa onde você fosse. Todo mundo se respeitava, as pessoas eram realmente boas. Claro que há exceções, mas a maioria delas era legal e prestativa. A porta estava sempre aberta para todos. Se você precisasse de ajuda e batesse em uma porta, receberia ajuda. Aqui (na Alemanha) você sente de forma diferente.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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