Diário para a realidade

13/08/2023 08:00
Por Ataualpa A. P. Filho

“O mundo está cheio de oportunidades por aí.” Essa foi a frase que uma criança disse à mãe quando ela estava diante do “sim e do “não”, diante de um desafio ocasionado por uma circunstância imposta pela realidade.

A mãe teve que tomar uma decisão e consultou a família. Do filho, que ainda está nos primeiros passos da vida, recebeu o apoio selado pela inocência de quem tem a certeza de que um brinquedo pode substituir outro, mesmo sem ter a noção plena da importância do desapego.

Eu passei a semana procurando um tempo para escrever uma carta à senhora Ficção com o propósito de incentivá-la a continuar na caminhada para superar a realidade que não cria suspense, mas nos surpreende.

Na sexta-feira à noite (04/08), na porta de uma sala de aula, perante uma turma de Ensino Médio, ouvi: “o mundo está cheio de oportunidades por aí”. Essa frase veio com um abraço de uma colega de profissão e ex-aluna que pediu um minuto para se despedir da turma, pois iria trabalhar em outra unidade escolar.

Não desisti da ideia de fazer a carta para enviar à senhora Ficção. Mas não poderia perder esta oportunidade de registrar um momento bastante significativo, porém inesperado. Vejo a realidade como um texto que precisa ser interpretado continuamente. Por isso tenho a crônica como a materialidade do processo reflexivo do cotidiano.

Na aula que ministrava, eu destacava a importância da crase na produção textual. Fiz uma pausa para que os alunos recebessem a professora com aplausos. E aqui cabe mencionar o aforismo de autoria do poeta Ferreira Gullar que se encontra na crônica publicada no Jornal Folha de São Paulo em 31/07/2011, com o título “Uns craseiam, outros levam a fama”: “A crase não foi feita para humilhar ninguém”.

Por meio da verdade revelada pela criança, uma frase com crase bem acentuada merece destaque: “ir à luta”, já que “o mundo está cheio de oportunidades por aí”, porém, na certeza de que não há milagre em zona de conforto.  E quem “vai à luta” com o escudo da ternura sabe que o amor não só abre corações, abre também portas com as chaves da ética e da moral. Desafios sempre irão existir, mas o viver não é uma corrida de obstáculos. Por isso que o andar de mãos dadas fortalece os nossos passos. Viver é ser-vir.

E, no gancho dos aforismos, penduro um: “quem constrói escada pode cair para cima. Quem não tem alicerce desmorona”.

Foi na noite da última sexta-feira do mês de julho (28/07) que nasceu esse meu desejo de fazer uma carta endereçada à senhora Ficção, pois, em uma situação também inesperada, no por acaso, encontrei outra ex-aluna, que há anos não a via: “professor, preciso lhe contar o que já vivi. Acho que vai dar um livro…”

Eu acompanhei o que ela viveu na adolescência. E nada sei do que ela vivenciou na fase adulta. Não sei quais as oportunidades que surgiram na caminhada dela. Mas, pelo sorriso de superação, havia um clima de vitória. Porém estavam estampadas no rosto as marcas do tempo que registra a nossa incompletude.

Riobaldo, personagem do livro “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa, é quem nos diz: “o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.”

Passei a enxergar a sala de aula como uma trincheira, ao perceber que a luta pela sobrevivência se torna menos árdua, quando ampliamos a nossa capacidade de ler a realidade. E, para isso, o aprimoramento da linguagem é imprescindível, uma vez que a palavra se encontra na linha de equilíbrio das relações humanas: a mediação perpassa pelo diálogo.

Continuo mergulhado nos livros pelo prazer do meu ofício. Mas a cada dia, certifico-me que a realidade é que alimenta os sonhos pelos desafios que a vida coloca na nossa travessia por este mundo. As escolhas das oportunidades que aparecem, a meu ver, devem respeitar alguns critérios pautados no bem comum. A ética, a moral, o respeito à dignidade humana são alguns fatores que precisam ser considerados na condução da nossa existência. E aqui vale lembrar os versos da canção “O que é? O que é?” de Gonzaguinha:

 “Eu fico com a pureza/ da resposta das crianças/ é a vida, é bonita/ e é bonita/ Viver e não ter a vergonha de ser feliz/ cantar, e cantar, e cantar/ a beleza de ser um eterno aprendiz…”

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