‘Diários de Otsoga’, um filme narrado ‘de trás pra frente’

24/07/2022 08:30
Por Luiz Carlos Merten, especial para AE / Estadão

Agosto volta a assombrar o cinema de Miguel Gomes. Numa entrevista por Zoom, o autor português, sentado num jardim com muito verde – “É a casa de meus sogros”, informa -, conta que julho e agosto representam o auge do verão no hemisfério norte – logo, em Portugal. “As pessoas, por conta das férias, ficam mais felizes, soltam-se.”

Foi assim em Aquele Querido Mês de Agosto, de 2008, sobre os pesquisadores e técnicos que viajavam pelo interior de Portugal, buscando sonoridades, gravando as músicas das diferentes regiões. O caso agora é outro. Diários de Otsoga, que estreou na quinta, 21, nos cinemas brasileiros, foi gravado durante a pandemia e marca uma inusitada codireção de Gomes com sua companheira, Maureen Fazendeiro.

Ela veio do documentário e, só para constar, foi durante a festa de As Mil e Uma Noites, em Cannes, que Miguel, às 3 da manhã, a pediu em casamento. “O filme começou a nascer numa conversa com o também diretor João Pedro Rodrigues. Ele se perguntava sobre o que seria possível fazer no lockdown. No primeiro isolamento ainda era possível, com todo cuidado, frequentar pessoas”, ponderou.

CAMADAS. O estalo, acrescenta, veio de uma conversa na casa de Crista Alfaiate, que foi a Sherazade de As Mil e Uma Noites. “Estavam ela e o namorado, ator de teatro. Éramos todos positivados e conversando sobre o que fazer. A ideia do filme começou a tomar forma. Um grupo isolado numa casa e impossibilitado de trocar um beijo.” Parece simples, mas, claro que sendo um filme de Miguel Gomes – de Tabu e da trilogia Mil e Uma Noites -, Diários de Otsoga possui, como se diz, camadas.

O próprio título – Otsoga é agosto ao contrário, e o filme é narrado de trás para frente. Começa com o grupo deixando a casa e termina com a chegada. “A casa é um personagem importante. Tivemos a sorte de encontrá-la. Pertence ao tio de um dos produtores. Maureen e eu gostamos de filmar com película. Mesmo com orçamento muito pequeno, não queríamos que Diários fosse apenas mais uma das iniciativas de artistas durante a pandemia, para tentar romper o isolamento. Filmamos em 16 mm, uma equipe reduzidíssima, mas o filme ficou como o víamos. Luminoso – talvez seja o filme mais luminoso feito durante a pandemia. Vai um tanto de esperança nisso, claro.”

Todas essas ideias foram surgindo durante a preparação. A casa, a equipe reduzida, o formato de diário, os três atores, dois homens e uma mulher. Um deles é Carlotto Cotta, conhecido com o mais belo rosto masculino do cinema português. O outro é o namorado de Crista, João Monteiro. O beijo, que seria completamente trivial – um homem e uma mulher beijando-se, mesmo se fossem dois homens, ou duas mulheres -, virou o “x” da questão. “Por causa da segurança, tivemos um oficial de saúde no set para garantir que não haveria perigo de contágio.” O beijo foi filmado no último dia, mas, pela cronologia invertida de Otsoga, poderia ir para o começo, o meio. “Escolhemos o momento justo.”

IMPROVISO. Na primeira semana, Miguel e Maureen ficaram sozinhos na casa com a roteirista Mariana Ricardo, que há tempos trabalha com ele, escrevendo seus filmes. A obra pequena – no tamanho, não na qualidade – terminou ganhando destaque. Foi a Cannes, na Quinzena dos Realizadores. O mais interessante é que o filme não foi realmente escrito. “Muita coisa veio da casa, e já estava nela. Quando os atores chegaram, na segunda semana, começamos a improvisar.”

Miguel Gomes é um autor exigente, mas nunca se sentiu mais livre. Ele concorda que é seu filme mais radical. Substituiu sua adaptação de Euclides da Cunha, Os Sertões, que ele está jogando para a frente. O próximo filme – grande – será rodado no Oriente. Outro Mil e Uma Noites? “Não, mas o mito estará no centro da trama, sempre está em meus filmes.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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