Dificuldade para montar equipes de UTI atinge pelo menos nove Estados

29/03/2021 13:00
Por Estadão Conteúdo

O rápido agravamento da pandemia no Brasil pressiona hospitais, que já lidam com a insuficiência de leitos e escassez de remédios. O risco de um apagão de profissionais especializados também é um problema. No caótico ambiente hospitalar, gestores e entidades médicas de pelo menos nove Estados – Bahia, Mato Grosso, Pará, Piauí, Rondônia, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Santa Catarina e Tocantins – relatam falta de intensivistas, dificuldades no atendimento ou necessidade de abrir rodadas de processos seletivos para contratar temporários.

O Brasil tem 543 mil médicos, mas nem todos preparados para as demandas atuais. “O que precisamos é de profissionais treinados para internação sob cuidados intensivos”, diz o presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), César Eduardo Fernandes. “E também dos demais profissionais de saúde, porque não é qualquer médico ou técnico que pode trabalhar numa UTI. As equipes de enfermagem têm de ter treinamento para manejar máquinas modernas e os respiradores.”

Em Santa Catarina, um dos Estados com maior colapso, já foram 32 processos de contratação na crise sanitária. Mas parte dos inscritos não aparece após a convocação. “Cremos que as desistências se dão por receio de trabalhar na linha de frente ao combate à covid-19. Mesmo assim, não se considera um apagão de profissionais, pelo menos no âmbito das estruturas próprias da Secretaria Estadual da Saúde”, diz o governo. O Estado tem 2,6 mil profissionais a mais e na rede de hospitais filantrópicos, cerca de 2,5 mil, em “ampliação sem precedentes”.

Na Bahia, informações oficiais do governo mostram que a demanda ainda tem sido atendida, mas os dados já apontam “dificuldades” para achar profissionais. Em Salvador e região metropolitana, foram abertas cerca de 2 mil vagas este mês.

O Piauí admite que a dificuldade maior é a de encontrar médicos. Foram ao menos dois processos seletivos em 2020 para médicos e demais áreas de enfermagem. A rede pública, diz o Estado, já teve 1.112 contratados e hoje são 1.004 em operação. No fim do ano passado, houve desligamentos por término de contrato ou pedidos de afastamento, alega o governo.

Segundo Gerson Junqueira Junior, presidente da Associação Médica do Rio Grande do Sul, existem hoje no País cerca de 20 mil médicos, de várias especialidades, que já trabalham em UTIs, mas a demanda pode chegar ao dobro disso. O ideal é que cada médico cuide de até 10 leitos de UTI, acrescenta o cirurgião. “No interior, a dificuldade é muito grande para encontrar o profissional”, explica. “E além da equipe, tem de ver se há estrutura de rede elétrica para os equipamentos, rede de abastecimento de oxigênio para os respiradores de alto fluxo, equipamentos de diálise”, diz.

O Estado tinha, segundo Junqueira, de 800 a mil leitos de UTI antes da crise. “Hoje tem 3.195 leitos operacionais de UTI, 1.021 na capital. Não é possível suportar isso”, destaca. “Há hospital com 160% de ocupação de UTI, outro com 145%, outro com 133%”, afirma. “Se isso não é colapso, o que seria?”.

O Rio Grande do Sul destacou que, “diferentemente de alguns Estados, não conta com rede hospitalar própria”. A pedido do governo estadual, o Exército montou unidade de campanha ao lado do Hospital de Restinga, em Porto Alegre.

Plantões e horas extras

Rondônia já abriu 85 editais de chamamento emergencial para todas as áreas, principalmente médicos. Na rede pública, segundo o governo, foram chamados 2.191 servidores, incluídos os administrativos. Colaboradores voluntários, diz o governo, são “casuais”.

“Não temos funcionários suficientes nas UTIs. Até porque nem todos querem assumir contratos provisórios, de caráter emergencial, e vir para cá, em plena pandemia, trabalhar com pacientes que estão com o coronavírus”, conta Maira Joaneide de Oliveira Barros, enfermeira que atua na UTI do Hospital Regina Pacis e de uma unidade de campanha em Porto Velho.

“Muitas vezes precisamos nos desdobrar, fazer mais horas extras, mais plantões”, acrescenta Maira Joaneide. “Vivemos horas, minutos e segundos de forma muito imprevisível. Quando pensamos que não, a saturação dos pacientes começa a cair, e é muito rápido. Corremos para tentar manter viva aquela pessoa.”

O governo de Mato Grosso admite dificuldade de aumentar os quadros da linha de frente, mas informa que “ainda é possível contratar profissionais da saúde” e a Secretaria Estadual de Saúde está com processo seletivo em aberto. “No ano passado, a Secretaria Estadual de Saúde de Mato Grosso abriu dois processos seletivos, um para atuação nos oito Hospitais Regionais geridos pelo Estado e outro para contratar atuação no Centro de Triagem da covid-19”, diz. Já foram contratados, segundo o governo, mais de 1,5 mil trabalhadores para atuar nessas unidades.

O Tocantins informa ter contratado cerca de 1,5 mil profissionais em diversas áreas de atuação de combate à pandemia. A Secretaria de Saúde local diz que foi aberto edital de cadastro para integrar voluntários à linha de frente, mas isso não ocorreu.

O Pará diz que foram contratados, em caráter emergencial, 316 profissionais, entre médicos, enfermeiros, farmacêuticos, técnicos de enfermagem e de apoio administrativo. Conforme o governo, o quadro médico de contratação direta da secretaria atende à capacidade de atendimentos diários nas policlínicas itinerantes”.

Presidente do Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Norte, Geraldo Ferreira diz que “há improvisação, principalmente na rede pública”. E alerta também para as perdas entre profissionais para a covid, o que piora a escassez. O Estado já acumula 50 mortes nas equipes de saúde que enfrentam o vírus, entre médicos e enfermagem, conforme a entidade. Trabalhadores doentes também precisam desfalcar, de forma temporária, a linha de frente. “A situação é gravíssima”, avalia Ferreira.

O governo potiguar diz “fazer contratos temporários e convocações de servidores concursados”. Até o dia 4, foram contratados 1.476 efetivos (concurso público), 2.331 temporários, mais 188 convocados para assinar contratos temporários. No dia 13, inda foi preciso abrir convocação de mais 69 profissionais.

Distribuição desigual

A presença desigual de médicos e outros profissionais da saúde pelo Brasil é um problema crônico. A pandemia evidenciou ainda mais essa dificuldade.

Segundo Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), existe uma “má distribuição geográfica, concentração no setor privado, baixa qualificação, e, principalmente, má gestão desses recursos humanos de alta especialização”.

Ele aponta que falta coordenação nacional do recrutamento desses profissionais. “Há uma fragmentação e precarização de contratação de recursos humanos via OSs (Organizações sociais, que prestam serviços para o poder público), diz Scheffer.

César Eduardo Fernandes, presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), vê falta de planejamento do poder público e afirma que as universidades no País enviam número suficiente de profissionais para o mercado. “O governo precisa cuidar disso com responsabilidade, fazer plano de carreira, parar de tratar isso com políticas de tapa-buracos”, defende.

Entidades médicas também reclamam de remunerações e contratos precários, principalmente entre profissionais mais jovens. Segundo Geraldo Ferreira, do sindicato potiguar da categoria, muitos são atraídos como “sócios” de empresas. Isso pode favorecer, diz, fraudes trabalhistas e tributárias.

Ajuda remota

“Aumentar o número de leitos exige profissionais capacitados, médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, para atender pacientes muito críticos, muito graves. Achar esses profissionais agora é muito difícil”, destaca Viviane Cordeiro Veiga, presidente do Comitê de Analgesia, Sedação e Delirium da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib).

A entidade recomenda que, nas regiões onde não há especialistas em terapia intensiva, é preciso ter um intensivista para dar suporte, inclusive por telemedicina. “Há outra questão: já temos a falta de insumos, de medicamentos. Então, esses profissionais têm de estar preparados para usar novas medicações, novos protocolos”, afirma ela, chefe de UTI do Hospital Beneficência Portuguesa.

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