Dízimo alimenta lobby por reabertura de templos

11/04/2021 16:00
Por Vinicius Valfré / Estadão

Com a decisão liminar que permitia a abertura de templos ainda em vigor, o pastor Valdemiro Santiago convocou seus fiéis para um culto presencial, no domingo de Páscoa, prometendo “um tempo poderoso de milagres e salvação” na pandemia de covid-19. Em São Paulo, a imponente sede da Igreja Mundial do Poder de Deus, que abriga até 10 mil pessoas, encheu. Ao final de mais de duas horas de sermões e testemunhos, Valdemiro pediu doações.

“Queria dizer que estamos dando um duro danado para pagar aluguéis, funcionários, fornecedores. Está tão difícil para todo mundo…”, implorou o pastor. Dentro da igreja, números das contas bancárias foram projetados em telões. Valdemiro, no entanto, se concentrou no método tradicional, e seus colaboradores passaram a percorrer o templo com envelopes, alforges – sacolas de pano – e gazofilácios – pequenas urnas de madeira. “Você vai colocar uma oferta generosa, com muita alegria. Vai colocar e dar um beijinho: ‘Essa é para o Senhor Jesus'”, orientou.

Na última quinta-feira, porém, o plenário do Supremo Tribunal Federal derrubou a liminar que havia sido concedida pelo ministro Kassio Nunes Marques. Ao afastar os fiéis das celebrações presenciais, o coronavírus reduziu a arrecadação de instituições evangélicas e católicas.

O presidente Jair Bolsonaro ajudou na pressão sobre a Corte. “Supremo fechar igrejas é o absurdo do absurdo”, insistiu ele. Na prática, a limitação das receitas é um dos panos de fundo do lobby religioso para que templos não sejam fechados no pior momento da covid-19.

Apoiar organizações religiosas é a causa mais popular de doações no Brasil, segundo a pesquisa Brasil Giving Report 2020, realizada antes da pandemia pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS). Na rotina das igrejas, depósitos em espécie feitos durante as celebrações são importante modalidade de arrecadação, principalmente nos templos frequentados por pessoas mais pobres. O impacto é acentuado pela crise econômica, que aumentou o desemprego e diminuiu a renda.

Contribuições de fiéis de todas as denominações religiosas levam cerca de R$ 15 bilhões para dentro das instituições. O valor equivale a 65% de tudo o que as entidades arrecadam, de acordo com os mais recentes dados da Receita Federal, de 2018. Líderes religiosos admitem encolhimento de 5% a 40% nas receitas.

O pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, confirmou a redução nas ofertas, mas disse que é mínima, não justificando sua defesa pela abertura de templos. “O mundo mudou. Para ter uma ideia, 80% de tudo o que recebo de oferta e dízimo é por dispositivos eletrônicos. A queda na arrecadação é ínfima. A prova é que, do ano passado até aqui, eu inaugurei 20 igrejas”, destacou.

A doação online não é a mais comum no Brasil. O estudo do IDIS indica que a contribuição em dinheiro é a opção de 65% dos fiéis. Transferências bancárias e pagamento via cartão de crédito são escolhidos por 23%. Boletos, por 7%.

Interlocutor de Malafaia na Câmara, o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) disse que sua igreja não amarga mais do que 10% de redução. “A maioria das igrejas de capitais teve alguma diminuição da receita, coisa de 5% ou 10%. Não conheço uma que tenha despencado 50%”, afirmou. “Dizem que a gente quer a presença física das pessoas por causa financeira. Não faz sentido. Isso é preconceito contra o segmento evangélico. Nos veem como gente atrás de dinheiro.”

Deputado estreante, o pastor e sargento aposentado Isidório (Avante-BA), da Assembleia de Deus, diz ter ouvido dos pares queixas sobre a baixa arrecadação, por causa da redução de até 60% nas presenças. “A igreja é o hospital da alma”, comparou Isidório, que perambula pela Câmara sempre levando uma Bíblia.

Presidente da Frente Parlamentar Evangélica, o deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP) minimizou a questão dos recursos: “O prejuízo maior é para o próprio fiel, que tem seu direito fundamental de aconselhamento espiritual atingido, suas liberdades de culto e liturgia embaraçadas. As igrejas querem cultuar Deus, interceder pelo País neste momento de crise. O financeiro vem depois”.

Nos Estados Unidos, o encolhimento já foi constatado em pesquisa. Levantamento da Lifeway Research, consultoria voltada para igrejas, apontou que, em 60% dos templos, as doações caíram 25%. Em outros 30%, a redução superou os 50%. O estudo ouviu 400 pastores protestantes na fase inicial da pandemia.

“A maneira de minimizar isso é por doações remotas, mas, evidentemente, a perda é maior do que a capacidade de doação por esses mecanismos”, disse André Miceli, coordenador do MBA de marketing e negócios digitais da FGV. “Por mais que haja prática remota, híbrida, e as igrejas estejam se reinventando, não conseguimos ver uma transferência na mesma proporção.”

Discurso

Para o pastor Ricardo Gondim, da Igreja Betesda – dissidência da Assembleia de Deus -, o interesse de alguns líderes religiosos em abrir templos na pior fase da pandemia vai além do aspecto arrecadatório. “Deve-se levar em conta não apenas o esforço de pagar as contas, mas a necessidade de manter o discurso”, afirmou. “Por anos, neopentecostais prometeram uma espécie de proteção contra outros males que nos acossam e agora, mais do que nunca, precisam continuar a dizer que quem frequentar aquela determinada igreja ficará imune ao coronavírus.”

Para Gondim, a sobrevivência institucional das igrejas deve ficar abaixo da salvação de vidas. Mas ele alerta que os prejuízos são imensos: “Não se deve medir o movimento evangélico por igrejas ricas, que estão na TV e já diversificaram suas rendas. Os pastores de igrejas em garagens, galpões e que nem conhecem a internet se encontram em uma situação de extrema fragilidade”.

Com mais de 20 mil templos, a Igreja Pentecostal Deus é Amor agiu para que templos menores não fechassem. A cúpula da instituição emitiu comunicado aos pastores informando que arcaria com várias despesas. A sede da igreja no Distrito Federal fica em Taguatinga. Líder da congregação, o pastor Gumercindo do Prado estima queda de 35% a 40% nas receitas, enquanto crescem demandas por cestas básicas.

Quando eram permitidos cultos presenciais, a igreja exigia a limpeza dos sapatos, álcool em gel e aferição da temperatura na entrada. Em maio passado, sua capacidade foi reduzida de 600 para 115 pessoas. “Estamos cientes do perigo que corremos, com tanta gente morrendo. De forma alguma concordaria em ter igreja cheia, sem distanciamento”, afirmou o pastor Gumercindo.

Aparecida ‘quebra’ com ausência de peregrinos

Sem os turistas católicos, o mercado da fé entrou em ruína e o impacto da pandemia de coronavírus na arrecadação quebrou uma cidade. Aparecida, município de 36 mil habitantes localizado a 170 km de São Paulo, vive da peregrinação de fiéis ao Santuário Nacional. Ali, a receita e os postos de trabalho são atrelados à rotina do templo construído em homenagem à santa surgida no Rio Paraíba do Sul, no século 18.

Em tempos normais, o Santuário atrai 13 milhões de pessoas por ano. Em 2020, no entanto, permaneceu sete meses fechado. Agora, na fase mais dura da covid-19, uma série de restrições de funcionamento voltou a ser imposta, conforme os critérios do plano emergencial do governo do Estado. A prefeitura foi à Justiça contra o decreto do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e ganhou uma liminar, mas perdeu em seguida.

Antes, eram 2,5 mil comerciantes e outros 600 vendedores ambulantes vivendo da devoção dos peregrinos e pagando licenças de funcionamento à prefeitura. Atualmente, só 5% dos 150 hotéis estão abertos. A maioria fechou e demitiu funcionários. De acordo com a administração municipal, o desemprego em Aparecida alcança a taxa de 80%.

Siqueira estima que, com a paralisação das atividades do Santuário, entre R$ 60 milhões e R$ 70 milhões deixaram de entrar nos cofres da prefeitura, que tem orçamento anual de aproximadamente R$ 140 milhões. No dia 29 de março, por exemplo, só 10% da cidade pagou o IPTU. A adimplência das taxas de alvarás de funcionamento, fonte de receita importante do município, nem sequer alcançou esse patamar.

“O pessoal fica falando que o Santuário tinha que ajudar. O povo sabe da minha ligação com o Santuário”, afirmou o prefeito de Aparecida. “Eu estive outro dia com o reitor. E ele me disse: ‘Também estamos sofrendo, não estamos tendo receita’.”

Cestas básicas

No “desespero” e sem agenda marcada, Siqueira foi até Brasília apelar para o ministro da Cidadania, João Roma (Republicanos). Conseguiu 7 mil cestas básicas. Ligado ao presidente do DEM, ACM Neto, Roma foi pessoalmente a Aparecida fazer a entrega, levando a tiracolo deputados e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

Em busca de imprimir uma marca à frente da pasta, o ministro Roma aproveitou para usar a cidade como palco para o lançamento do programa Brasil Fraterno. Trata-se de uma parceria entre o governo federal e o Sistema S que prevê a distribuição de alimentos para famílias em situação de vulnerabilidade social.

Assim como fez em São Paulo o pastor Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, o arcebispo de Aparecida, d. Orlando Brandes, abriu o Santuário na Páscoa com o respaldo da decisão liminar do ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal. No templo, que acomoda mais de 30 mil pessoas e tem área externa para outras 300 mil, 154 ocuparam seus lugares.

Com a decisão do plenário do STF que derrubou a liminar de Nunes Marques, porém, o Santuário voltou a suspender as missas presenciais. E o reflexo foi a queda na arrecadação.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Igreja Mundial do Poder de Deus não se manifestaram até a conclusão desta edição.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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