Dois brasis se cruzam na história de pai e filho
Oito mil quilômetros separam as cidades de Jaú, no interior de São Paulo, e Ann Arbor, no Estado de Michigan, nos Estados Unidos. “Esse número não o impressionava. Ele tinha percorrido centenas de vezes essa distância ao longo de cinco décadas como caminhoneiro”, escreve o professor universitário José Henrique Bortoluci logo no início de O Que É Meu. Uma estreia potente na literatura, que conta a história do Brasil por meio da figura do pai, um caminhoneiro já aposentado, que ajudou a construir lugares importantes do País, como o Aeroporto de Guarulhos, onde seu filho um dia embarcou para um doutorado nos EUA. Mas esse é apenas o começo de uma longa estrada.
Tempo. Distância. Variáveis racionais e subjetivas, fundem-se na narrativa que trata da perenidade da vida, do tempo como aliado, mas inimigo também, principalmente quando se trata da rapidez da doença: um processo genético involuntário que se alimenta das células, multiplica-se aleatoriamente, carcome o hospedeiro. Aniquila o corpo enquanto sorve a vida. Esse é o câncer. O inimigo invisível de um pai – e um filho. É aí que entra Zé Henrique, na tentativa de contar a história do homem que lhe deu a vida. Ele narra uma parcela da história do Brasil profundo pelas estradas que o pai cruzou na boleia de um caminhão.
O caminho escolhido em O Que É Meu é uma narrativa híbrida imantada de memória e sustentada pela tradição da história oral. As lembranças do pai vertidas em deixas para o personagem no livro, tanto em capítulos independentes, quanto em relatos destacados que complementam a narrativa do filho. Neste trajeto, há também acontecimentos recentes, história social e causos notáveis no imaginário brasileiro – crise política após as Jornadas de Junho de 2013, o impacto do coronavírus, o Massacre de Eldorado dos Carajás, a violência de Belo Monte. Enfim, em meio a tantas movimentações, está a dificuldade do trabalhador médio em sobreviver a tantas desgraças.
No relato, a voz do pai é amplificada pelas escolhas de José Henrique. “O maior aprendizado que tive com esse livro foi construir literariamente essa voz do meu pai”, conta o escritor ao Estadão. “Meu objetivo era cruzar a história do meu pai com a história do Brasil, trazer o relato oral de um homem sem educação universitária para o texto literário.”
Nesse processo, o autor trabalha com uma face da desigualdade social que não está em livros, traduzida em estatística ou em tratados acadêmicos. São relatos brutais da precariedade encontrada pelos fundões do Brasil, como as microviolências do cotidiano enfrentadas por Jaú, apelido do homem que foi caminhoneiro desde a década de 1970 até meados de 2010.
“Dos pés à garganta, as cicatrizes desenham o eixo vertical de seu corpo, um meridiano que o corta ao meio como uma estrada rasgada da pele”, escreve o autor sobre seu pai, que sempre venceu a briga com “a peixeira dos médicos”. O corpo marcado de inúmeras intervenções cirúrgicas que se submeteu ao longo dos anos é outro registro importante.
Afinal, esses queloides também são memória. Provam as vivências e a resistência de um homem destemido que viu a construção das rodovias no extremo norte do País, como a Transamazônica, e os caminhos que levam à Usina de Belo Monte, no Pará. Viagens perigosas, mas repletas de lições, sobre caráter, ética e companheirismo. Do fio da memória, o autor tece uma reflexão do presente quando escreve que “Assim como a devastação da floresta, o câncer é a encarnação do evangelho de crescimento a qualquer custo”.
Zé Henrique havia tempos pensava em escrever algo a respeito do Brasil. A motivação partia das histórias do pai que, de alguma forma, dão ao seu texto oportunidade de cruzar, várias vezes, a fronteira entre o relato como documento da realidade e a imaginação. Destacam-se personagens demasiadamente humanos nos relatos sempre bem-humorados do, hoje, senhor, que lembra colegas de profissão, em sua maioria mortos antes dos 60 anos.
Foi um processo de escrita marcado pela dor e pela dúvida. Tendo início logo após a confirmação do diagnóstico de câncer do pai. Auge da pandemia, em 2020, Zé Henrique vivia o hiato da dúvida – a carregou até as últimas páginas do livro. Mas resolveu enfrentar o próprio tempo e começou um diário para anotar as conversas com o pai. “O livro podia ser um testamento final, mas havia muita vida ali, e ela era maior que a própria morte”.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.