É o Brasil que não tem jeito, ou é a República?

12/02/2022 08:00
Por Gastão Reis

Tenho recebido de leitore(a)s comentários sobre artigos meus em que a tônica é a profunda desilusão com o País. A frase-resumo é assim: “O Brasil não tem mais jeito”. Existe uma piada que, modificada, dá a medida, com senso de humor, do que de fato ocorreu.

A piada original é a seguinte. Ao criar o mundo, Deus teria colocado tudo de bom no Brasil. Uma terra com imensos recursos naturais, sem tornados e vulcões. O arcanjo Gabriel, que assistia à cena, comentou: “É injusto, Senhor, em relação ao que fez em outras terras.” E teria recebido como resposta: “Espera só para ver o povinho que vai habitá-la.” A piada monarquista, modificada, tem outra versão para o que Deus disse: “Espera só para ver a elitinha golpista que vai tomar o poder após a proclamação da república sem participação popular!” Deus, em sua infinita sabedoria, não colocou a culpa em quem não era responsável pelo desastre que viria.

Para entender melhor o que ocorreu com os descaminhos da república, tomemos a rota (equivocada) de Marx. Ele acreditava existir leis de evolução da História, a principal delas seria a luta de classes. Os modos de produção se sucederiam até chegar à etapa final, o comunismo, a sociedade sem classes. Para tal, seria necessário passar pela etapa intermediária da ditadura do proletariado para superar o capitalismo e os vícios culturais da sociedade bur-guesa baseada na exploração do homem pelo homem. Era o trabalho a mais não-pago da classe operária apropriada pelos capitalistas. De fato, acabou gerando uma classe dirigente de desclassificados como Stálin e comparsas de triste memória. Ironicamente, o capitalismo não sucumbiu às suas alardeadas contradições internas, e sim, o próprio comunismo.

Marx, entretanto, não se deu conta dos efeitos catastróficos da ditadura do proletariado. Na verdade, uma ditadura sem limites que impôs censuras de todo o tipo, indo da área da produção até a da liberdade de expressão e imprensa. Acabou num Frankenstein político-institucional, o totalitarismo, regime ancorado no controle total da vida pública e da vida privada. Forte militarismo e nacionalismo eram parte do pacote. A filósofa Hannah Arendt nos revelou seus horrores em matéria de desrespeito ao Outro.

Este pequeno preâmbulo de dois parágrafos nos permite enquadrar o que ocorreu desde o início da república. A visão positivista de Auguste Comte tem parentesco com a de Marx quanto a ditaduras. Comte dizia que assim como não há liberdade em física e química (hoje contestado), também não deveria havê-la em política, esfera a ser comandada por uma ditadura científica. Para os militares brasileiros e parte da elite civil, propensos a uma visão autoritária da vida política, o disparate soou como música a seus ouvidos, pois lhes dispensava de ouvir o Outro, princípio basilar da democracia.

Como alertara Bakunin, a classe dirigente da revolução russa, sem a menor cerimônia, logo de cara, enquadrou os proletários no que seria o novo conceito de “liberdade”, que não incluía críticas ao andar de cima. Uma tradição de mais de dois mil anos, nascida na Grécia do pluralismo político, foi jogada no lixo com perversas consequências socioeconômicas. Na ex-URSS, após 70 anos, a fragilidade intrínseca do sistema acabou por fazê-lo ruir. Não foi uma bomba atômica capitalista jogada sobre Moscou. Adam Smith explica.

Pode parecer insólito, mas existe um paralelo, em amplitudes diferentes, entre o que aconteceu na URSS e a chegada da república no Brasil. E aqui adentramos no legado da herança luso-afro-indígena até 1889. O Brasil, do ponto de vista político-institucional, se constituía na única república que de fato existia na América Latina, segundo o presidente Juan Pablo Rojas Paúl, da Venezuela, conhecido pela frase: “Foi-se a única república da América Latina”. Dois outros presidentes latino-americanos disseram algo parecido. Haveria base real para tamanha decepção deles, sendo seus três países repúblicas?

Na verdade, eles se anteciparam a Alan Ryan, em seu magistral “On Politcs” (“Da Política”, sem tradução em português), que vai na mesma direção ao afirmar e comprovar em seu livro que poucos países são tão res publicanos como a Inglaterra a despeito de ser uma monarquia. Ou seja, uma monarquia parlamentar pode ter um grau de preservação do interesse público até mesmo superior ao das repúblicas, fato confirmado hoje no cotejo entre monarquias e repúblicas europeias por seus principais indicadores sociais, econômicos, culturais e de renda per capita bem distribuída.

Ainda me lembro bem de um Manifesto à Nação Brasileira, lançado pela Família Imperial, em novembro de 1992, ao qual dei minha contribuição. Ali era assumido o compromisso com a manutenção dos valores que nortearam as instituições e costumes políticos de nosso período monárquico, quais sejam: liberdade de imprensa, de expressão, de pensamento e de iniciativa individual; defesa intransigente do interesse público; alternância dos partidos no poder; primado do poder civil; e cobrança de responsabilidade às classes dirigentes.

Passados 130 anos, duas vezes o tempo de duração do Império, a república brasileira não se celebrizou por sua fidelidade aos valores supramencionados. Pesquisa de opinião feita em 1992 revelava a profunda decepção da população com os rumos do País. O mesmo ocorreu com pesquisa feita pelo Datafolha em 2021 quanto ao baixíssimo grau de confiança do Povo nos poderes e nas instituições da república. Ou seja, hoje, uma geração depois, a situação se agravou em direção a uma verdadeira ficha criminal da república: corrupção sistêmica, desigualdade brutal e políticos que não nos representam.

Que tal pensarmos na alternativa, que já foi parte bem sucedida de nossa História, de uma monarquia parlamentar constitucional? Eis o desafio que se impõe a todos nós, Povo e formadores de opinião, de ir em busca da res publica, vale dizer, do Bem Comum, numa moldura político-institucional capaz de tornar realidade o sonho brasileiro que a república prometeu e nunca entregou.

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