‘É terrivelmente injusto ver o Brasil como ameaça global’, diz Araújo

23/03/2021 13:09
Por Felipe Frazão / Estadão

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, considera “terrivelmente injusto” o Brasil ser visto como ameaça global por ter se tornado o epicentro da pandemia da covid-19, com recorde de mortes e infecções, além de celeiro de uma cepa com maior poder de transmissão. Em entrevista ao Estadão, concedida em seu gabinete, no Itamaraty, Araújo criticou a tentativa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de liderar a discussão sobre vacinas com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e com o G-20. “Lula não tem credibilidade nenhuma”, avaliou.

O chanceler afirmou que a expectativa de oposição entre Biden e o presidente Jair Bolsonaro já foi “dissipada”, mas observou que países ricos ainda não foram solidários na distribuição de imunizantes. Apesar da cobrança por sua demissão, Araújo disse não se sentir ameaçado porque executa um trabalho em nome do presidente, e não pessoal.

O Brasil tem sido visto como uma ameaça global neste momento da pandemia. O que o Itamaraty tem feito a respeito?

Acho que isso é, antes de tudo, terrivelmente injusto, porque surgiram cepas em outros lugares, no Reino Unido e na África do Sul. E ninguém diz que são ameaças globais. Existe aí uma visão um pouco discriminatória em relação ao Brasil. Estamos sendo golpeados por essa doença, obviamente. A gente pode fazer o que está sendo feito. Acelerar o processo de vacinação, estamos conseguindo vacinas de várias frentes possíveis. É importante que haja esse escrutínio mundial, mas baseado nos fatos, e não nessa percepção de algo fora do controle, que o Brasil está sendo uma fonte de problemas.

Além da restrição de circulação, brasileiros correm risco de discriminação no exterior?

Não vejo possibilidade. O que a gente fica triste é ver pessoas, muitos formadores de opinião, aqui no próprio Brasil, amplificando o problema, querendo justamente criar esse clima anti-Brasil ao redor do mundo, por finalidades políticas. No fundo, é uma “oikofobia”, uma raiva de si mesmo. Em vez de ser contra o estrangeiro, é contra o próprio nacional.

Nenhum país está crescendo na média de casos e mortes diárias como o Brasil, que virou epicentro da pandemia.

Sim, em números absolutos. Claro que a gente se preocupa, e somos os primeiros a querer controlar. Mas isso não é razão para que se crie essa ideia de que nada está sendo feito e de que o Brasil é uma ameaça.

O sr. falou recentemente que o sistema de saúde estava “suportando bem” a pandemia. Mudou de percepção?

Claro, a situação piorou, se tornou mais delicada nessas últimas duas, três semanas. Falei isso num momento bem diferente (o ministro usou a expressão no último dia 5, quando os Estados alertavam para operação “no limite” e já havia filas por UTI). Falar de colapso pode dar uma ideia distorcida da realidade.

O governo Bolsonaro errou ao não fechar mais cedo contratos para a vacinação?

Não. Eu acho que, desde o começo, houve uma estratégia, a meu ver, muito bem conduzida pelo Ministério da Saúde. Uma coisa é a contratação, outra coisa é ter as vacinas.

Estamos sofrendo atrasos.

Como o mundo todo. Lá atrás, opções diferentes de contratação não necessariamente estariam se refletindo num ritmo diferente de vacinação agora.

O ex-presidente Lula fez um apelo na TV americana, propondo a Joe Biden a ideia de reunir o G-20 para discutir a distribuição de vacinas. O que acha da ideia?

Existe uma confusão mental e de temas. Uma coisa são os países que não têm condições de comprar vacinas e esperavam mais dos países desenvolvidos. A gente viu em reuniões virtuais no ano passado todo mundo dizendo que é preciso solidariedade, mas, do ponto de vista da maioria dos países sem recursos, essa solidariedade ainda não chegou. A nossa situação é diferente, a gente tem recursos, graças a Deus, para aquisição de vacinas, o problema é a disponibilidade.

Lula é capaz de liderar algum esforço diplomático que faça sombra a Bolsonaro?

De forma nenhuma. O ex-presidente Lula não tem absolutamente nenhuma credibilidade nem legitimidade para liderar o que quer que seja.

Bolsonaro participará da cúpula sobre clima que Biden promoverá em abril? O que vai propor?

Sim, ele vai. Os americanos querem que essa cúpula seja um momento de mensagens fortes do que os países podem fazer na área ambiental. As conversas estão indo bem. O Brasil tem disposição de contribuir para redução de emissões e capacidade de controlar totalmente o desmatamento ilegal e o uso sustentável de nossos recursos. Quando Biden assumiu se dizia que isso seria um grande problema entre Brasil e EUA. No fundo, está nos unindo. Dissipou-se aquela ideia de que estaríamos em campos opostos. Vamos começar a falar da dimensão comercial também. Eu terei proximamente contatos com a nova representante de comércio dos EUA. Essa parte não está esquecida.

Qual sua expectativa para que o acesso à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) ocorra?

A sensação dos membros atuais da OCDE e do secretariado é de que, embora não tenhamos formalmente aberto o processo, estamos cada vez chegando mais perto, aderindo a mais instrumentos, então é natural e é bom que o Brasil seja tratado com mais exigência, mais atenção.

O governo enviou agentes de inteligência ocultos à última Cúpula do Clima (COP). Houve reação contrária nas Nações Unidas, e o Ministério Público abriu inquérito. Foi válido?

Prefiro que as razões do Executivo brasileiro sobre como foi conformada a delegação não sejam expostas nesse âmbito. Posso garantir que tudo feito de maneira totalmente legal e com todo o respeito às normas nacionais e multilaterais.

Isso pode prejudicar a participação brasileira na COP 26?

O importante são as propostas negociadoras que nós vamos levar. Há um cenário bem mais favorável neste ano. Os EUA voltando ao Acordo de Paris é muito importante, porque antes a visão eurocêntrica dominava. E Brasil, Índia e China com visões laterais. Agora com EUA como outro grande participante, isso abre mais avenidas, torna mais complicado o negócio, o que é bom.

O Itamaraty voltará a dar maior participação à sociedade civil na delegação?

Ainda não começamos a falar disso. O importante é ter uma delegação negociadora sólida com capacidade técnica em todas as mesas. Espero que a participação da sociedade civil não seja uma coisa destrutiva, contra tudo o que o Brasil diz. Nessas reuniões a plateia acaba atrapalhando o jogo às vezes.

No ano passado houve estresses diplomáticos com a China e um pedido de substituição do embaixador chinês. Como foi esse episódio?

Eu, pessoalmente, responsável pelas relações internacionais do Brasil, sob coordenação do presidente, nunca expressei nada contra a China. Acho importante que haja transparência no estudo de como surgiu o vírus. Não que a China tenha culpa, mas o vírus surgiu lá. Surgiu no mundo inteiro essa ideia de chamar ou não de vírus chinês. Nunca tive embate com a China, nem nesse aspecto, nem de atribuir culpa pela pandemia. Agora, o que aconteceu naquela ocasião foram reações inadequadas por parte do embaixador da China a esse tipo de menção. O Brasil hoje sofre críticas ao redor do mundo, às vezes de parlamentares, até de governos de outros países e não só da opinião pública em geral, e nossos embaixadores não ficam indo ao Twitter para bater boca ou ameaçar.

Mas isso ficou num nível de manifestação pública ou foi levado a Pequim?

Eu conversei, por diferentes meios, com autoridades chinesas lá em Pequim, contrapartes minhas.

O sr. pediu a substituição do embaixador chinês?

Não quero entrar no conteúdo da conversa. Houve uma contestação nossa, uma chamada de atenção nossa em relação à atitude do embaixador, o comportamento não era construtivo, não era benéfico à relação Brasil-China. O diplomata tem que aceitar uma certa assimetria naquilo que ele pode falar e naquilo que os agentes do país falam.

O sr. tem sido alvo de especulações de que pode deixar o governo. Já conversou com Bolsonaro objetivamente sobre isso?

Tenho certeza de que não há nada desse tipo sendo pensado. Meu trabalho não é meu, é a implementação de uma agenda de política externa que o presidente traz desde a campanha. Bolsonaro me nomeou por causa do meu compromisso de fazer a política que ele quer. A gente descobriu muita afinidade. Não é uma coisa acidental.

O sr. tem planos de se candidatar a cargos políticos eletivos?

Não tenho nenhum plano, jamais pensei nisso.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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