Elogio do pai: “quem não vive para servir não serve para viver”

14/08/2022 09:00
Por Leonardo Boff

Esbelto, de figura elegante, sempre fumando seu palheiro, ele foi um corajoso desbravador. Quando os colonos italianos não tinham mais terras para cultivar na Serra Gaúcha, eles, em grupo, emigraram para o interior de Santa Catarina em terras cheias de pinhais, Concórdia, hoje, sede dos frigoríficos da Sadia e nos arredores, da Perdigão e da Seara.

Não havia nada, exceto alguns caboclos, sobreviventes da guerra do Contestado e grupos de indígenas kaingang, desprezados e sempre defendidos por ele. Reinavam os pinheiros, soberbos, a perder de vista.

Os colonos alemães, poloneses e  italianos vieram, organizados em caravanas, trazendo seu professor, seu puxador de reza e uma imensa vontade de trabalhar e de fazer a vida a partir do nada. 

Ele estudou vários anos com os jesuítas em São Leopoldo, no Colégio Cristo-Rei, no Rio Grande do Sul.  Acumulara vasto saber humanístico: sabia algo de latim e de grego e lia em línguas estrangeiras. Viera para animar a vida daquela  “gente poverella”. 

Era mestre-escola, figura de referência e respeitadíssimo. Dava aulas de manhã e de tarde. À noite ensinava português para colonos que só falavam italiano e alemão em casa, o   que era proibido, pois era o tempo da Segunda Guerra Mundial. Ao lado disso, abriu uma escolinha para os mais inteligentes a fim de formá-los  guarda-livros (contabilistas) para fazer a contabilidade das bodegas e  das vendas da região. 

Como os adultos tinham especial dificuldade em aprender, usou de um expediente criativo. Fez-se representante de uma distribuidora de rádios de Porto Alegre. Obrigava cada família a ter um rádio em casa e assim aprender o “brasilian”, ouvindo programas em português. Montava cataventos e pequenos dínamos onde havia uma cascata para que pudessem recarregar as baterias. 

Como mestre-escola, era um Paulo Freire avant la lettre. Conseguiu montar uma biblioteca de mais de dois mil livros. Obrigava cada família a levar um livro para casa, lê-lo. No domingo, depois da reza do terço em latim, formava-se uma roda, sentados na grama, onde cada um contava em português o que havia lido e entendido. 

Nós, pequenos, ríamos, até não mais poder, pelo português atrapalhado que falavam. Não ensinava aos alunos apenas o básico de toda a escola, mas tudo o que um colono devia saber: como medir terras, como deveria ser o ângulo do telhado do paiol, como fazer cálculo de juros,  como cuidar da mata ciliar e tratar os terrenos com grande declive. 

Na escola introduzia-nos nos rudimentos de filologia, ensinando-nos palavras latinas e gregas. Nós, pequenos, sentados atrás do fogão por causa do frio gélido, devíamos recitar todo o alfabeto grego, alpha, beta, gama, delta, teta…

Mais tarde, no seminário, eu me enchia de orgulho ao mostrar aos outros e até aos professores a filologia de algumas palavras. Aos onze filhos incitava-nos à muita leitura. Eu decorava frases de Hegel e de Darwin, sem entendê-las, para dar a impressão que sabia mais que os outros. Sempre me perguntava o que significava a frase de Parmênides: “o ser é e não ser não é”. E até hoje sigo me perguntando.

Mas era um mestre-escola no sentido clássico da palavra, porque não se restringia às quatro paredes. Saía com os alunos para contemplar a natureza, explicar-lhes os nomes das plantas, a importância das águas e das árvores frutíferas nativas. 

Naqueles interiores distantes de tudo, funcionava como farmacêutico. Salvou dezenas de vidas usando a penicilina sempre que chamado, não raro, tarde da noite. Estudava num grosso livro de medicina, os sintomas das doenças e como tratá-las.

Naqueles fundos ignotos de nosso país, havia uma pessoa preocupada com problemas políticos, culturais e até metafísicos e se perguntava pelo destino do mundo. Criou até uma pequena roda de amigos que gostavam de discutir “coisas sérias”, sobretudo, para ouvi-lo. 

Sem ninguém com quem intercambiar, lia os clássicos do pensamento como Spinoza, Hegel, Darwin, Ortega y Gasset e Jaime Balmes. Passava longas horas à noite colado ao rádio para escutar programas estrangeiros e se informar sobre o andamento da Segunda Guerra Mundial.

Era crítico à Igreja dos padres  porque estes não respeitavam os  protestantes alemães, condenados já ao fogo do inferno por não serem católicos. Muitos estudantes olhavam para aquelas meninas loiras, bonitas e luteranas, e comentavam: “que pena que elas, tão lindas, vão para o inferno”. Meu pai opunha-se a isso e, com dureza, tratava aqueles que discriminavam os “negriti” e os “spuzzetti” (os “negrinhos” e os “fedidinhos”), filhos e filhas de caboclos.  A nós, filhos e filhas, obrigava-nos a sentar na escola sempre ao lado deles para aprender a respeitá-los e a conviver com os diferentes.

Sua piedade era interiorizada. Passou-nos um sentido espiritual e ético de vida: ser sempre honesto, nunca enganar a ninguém, dizer sempre a verdade e confiar irrestritamente na Providência divina. 

Para que seus onze filhos pudessem estudar e chegar à universidade vendia, aos pedaços, todas as terras que tinha ou herdara. No fim, ficou sem  a própria casa. 

Sua alegria era sem limites quando os filhos e filhas vinham de férias, pois assim podia discutir horas e horas com eles. E nos batia a todos. Morreu jovem, com 54 anos, extenuado de tanto trabalho e de abnegado serviço em função de todos. Pressentia que ia morrer pois o coração cansado fraquejava dia a dia. E tomava apenas como remédio maracujina.

Sonhava em conversar no céu com Platão e Aristóteles, discutir com Santo Agostinho, ouvir os mestres modernos e estar entre os sábios. Os filhos inscreveram seu lema de vida sobre sua tumba:

Foto: Arquivo Pessoal – Leonardo Boff

De sua boca ouvimos, de sua vida aprendemos: quem não vive para servir não serve para viver”. 

Morreu de infarte e na mesma hora, no dia 17 de julho de 1965, em que eu embarcava de navio para estudos na  Europa. Só lá, um mês depois, soube de sua travessia. Este mestre-escola criativo, inquieto, servidor de todos e sábio,  longe dos centros, se questionava sobre o sentido da vida nesta terra. O leitor e a leitora  seguramente já adivinharam quem era: meu querido e saudoso pai, Mansueto, que, neste dia dos pais, o lembro com carinho e infinita saudade, meu verdadeiro mestre.

O filho Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.

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