Em meio à guerra de gangues do Haiti, um hospital resiste

03/03/2023 15:43
Por Megan Janetsky e Fernanda Pesce, Associated Press / Estadão

Quando tiros de metralhadora estouram do lado de fora das cercas de arame farpado ao redor do Centro Hospitalar de Fontaine, o barulho invade um refeitório cheio de profissionais de saúde cansados, trajando jalecos. Ninguém se abala. Tiroteios fazem parte do cotidiano em Cité Soleil – a parte mais densamente povoada da capital do Haiti, coração da guerra de gangues de Porto Príncipe.

À medida que as gangues foram aumentando seu domínio sobre o Haiti, muitas instalações médicas nas áreas mais violentas do país caribenho fecharam, tornando Fontaine um dos últimos hospitais e instituições sociais em um dos lugares mais desregrados do mundo. “Fomos deixados sozinhos”, diz Loubents Jean Baptiste, diretor médico do hospital.

Fontaine pode representar a diferença entre a vida e a morte para centenas de milhares de pessoas que estão apenas tentando sobreviver, e oferece um pequeno oásis de calmaria em uma cidade que mergulhou no caos.

O perigo nas ruas complica tudo: quando os integrantes das gangues com ferimentos de bala aparecem nos portões, os médicos pedem que deixem as armas na porta como se fossem casacos. Os médicos não podem voltar em segurança para casas em áreas controladas por gangues rivais, e precisam morar em dormitórios do hospital.

Pacientes que sentem medo demais de procurar atendimento básico em razão da violência chegam em condições cada vez mais precárias. O acesso à assistência médica nunca foi fácil no Haiti, o país mais pobre do Hemisfério Ocidental.

Ano passado, porém, ele sofreu um duplo golpe. Uma das maiores facções de gangues do Haiti, chamada G9, bloqueou o mais importante terminal de combustíveis de Porto Príncipe, essencialmente paralisando o país por dois meses. Ao mesmo tempo, um surto de cólera agravado por restrições de mobilidade impostas pelas gangues deixou o sistema de saúde haitiano de mãos atadas.

O alto comissário da ONU para os direitos humanos, Volker Türk, disse este mês que a violência entre a G9 e uma gangue rival transformou Cité Soleil em “um pesadelo vivo”.

As lembranças do desespero nunca estão muito longe. Um caminhão blindado conduzido por dirigentes do hospital passa por centenas de tortas de lama, secando sob o sol escaldante para encher o estômago de pessoas que não têm condições de comprar alimentos. Marcas “G9” pintadas com tinta spray preta pontilham os edifícios próximos, deixando claro quem está no comando.

Em um relatório de fevereiro, a ONU documentou 263 assassinatos entre julho e dezembro apenas na restrita área em torno do hospital, com a observação de que a violência está “dificultando gravemente” o acesso aos serviços de saúde.

Foi o caso de Millen Siltant, de 34 anos, uma vendedora de rua sentada em um corredor de hospital enquanto aguarda uma consulta, as mãos nervosas segurando a papelada médica sobre a barriga grávida. Perto dali, funcionários do hospital brincam com cerca de 20 bebês e crianças pequenas, órfãos cujos pais foram mortos na guerra de gangues.

Siltant normalmente levaria uma hora atravessando a cidade nos ônibus coloridos conhecidos como tap-taps, para fazer suas consultas de pré-natal em Fontaine. Lá ela se juntaria a outras grávidas aguardando exames e mães carregando crianças desnutridas na fila de pesagem. Todas as clínicas da região onde mora fecharam, segundo ela. Mas por dois meses no ano passado ela não conseguiu sair de casa, porque as gangues que mantêm a cidade refém tornaram quase impossível trafegar pelas ruas sinuosas e poeirentas.

“Alguns dias, não há transporte porque não há combustível”, contou. “Às vezes há um tiroteio na rua e você passa horas sem poder sair (…) Agora estou preocupada porque o médico disse que preciso fazer uma cesariana.”

Os profissionais de saúde disseram à Associated Press que a crise vem causando mais ferimentos por bala e queimaduras. Ela também impulsionou um aumento de doenças menos previsíveis, como hipertensão, diabetes e infecções sexualmente transmissíveis, principalmente pelo acesso reduzido aos cuidados primários.

As mulheres grávidas são desproporcionalmente atingidas. A ginecologista Phalande Joseph vê a repercussão todos os dias quando sai do dormitório do hospital e veste seu uniforme azul claro. A jovem médica haitiana calça um par de luvas cirúrgicas brancas e faz uma incisão na barriga de uma paciente grávida, com uma firmeza nas mãos que só a prática traz. Ela trabalha rápido, conversando com a equipe médica em seu crioulo nativo, até irromper a explosão de choro de uma bebê, que as enfermeiras envolvem em cobertores cor-de-rosa.

Cirurgias como essa se tornaram mais comuns, explica Joseph entre uma cesariana e outra, porque as mesmas condições que se intensificaram em meio à turbulência podem tornar letal uma gravidez de alto risco. Este ano, 10.000 mulheres grávidas no Haiti podem enfrentar complicações obstétricas fatais em razão da crise, de acordo com dados da ONU.

Esses riscos são agravados pelo fato de que muitas das pacientes de Joseph são sobreviventes de violência sexual ou viúvas cujos maridos foram mortos por gangues. Um ar de medo permeia as dificuldades.

“Se elas começam a ter contrações às 3 da madrugada, ficam com muito medo de vir aqui porque é cedo demais, e elas temem que algo possa acontecer com elas por causa das gangues”, explica Joseph.

“Muitas vezes, quando chegam, o bebê já está em sofrimento, e é tarde demais, então precisamos fazer a cesariana.” Isso ficou mais claro para ela em outubro do ano passado, quando quatro homens chegaram correndo a um hospital, carregando uma mulher em trabalho de parto deitada sobre uma porta. Por causa dos bloqueios de gangues, a mulher não conseguia encontrar transporte para o hospital depois que a bolsa estourou.

“Esses quatro homens não eram nem da sua família. Eles a encontraram dando à luz na rua. (…) Quando soube que ela perdeu o bebê, fiquei abalada”, diz.

“A situação no meu país está tão ruim, e não há muito que possamos fazer a respeito.”

O Centro Hospitalar de Fontaine foi inaugurado em 1991 por Jose Ulysse, e começou como uma clínica de uma única sala que oferecia serviços médicos básicos para uma comunidade sem outros recursos.

Ulysse e sua família trabalharam para expandir o hospital ano após ano. Eles lutam para manter as portas abertas, segundo ele. Mesmo quando os tiroteios chegam às portas de Fontaine, o hospital reabre poucas horas depois. Caso fechasse por mais tempo, os gestores temem que ele poderia perder o ritmo e ficaria difícil reabrir.

Atualmente, é o único local que realiza cesarianas e outras cirurgias de alto nível em Cité Soleil. Como a maioria das pessoas da região vive em extrema pobreza, o hospital atende os pacientes gratuitamente ou a preços módicos, mesmo enfrentando dificuldades para comprar equipamentos médicos avançados com recursos do UNICEF e de outras organizações humanitárias internacionais.

Entre 2021 e 2022, a unidade registrou um salto de 70% no número de pacientes.

O hospital se beneficia de um certo nível de proteção porque aceita todos os pacientes. “Não escolhemos lados. Se dois grupos de pessoas se enfrentarem, e chegarem ao hospital como qualquer um, elas receberão tratamento”, diz Jean Baptiste.

Até as gangues entendem a importância dos cuidados médicos, acrescenta. Ainda assim, parece que o cerco está se fechando. O aumento nos roubos de veículos médicos impossibilita que Fontaine invista em uma ambulância. Quando operadores de ambulância são chamados em áreas como Cité Soleil, a resposta que dão é simples: “Sinto muito, não podemos ir até aí”.

A clínica móvel de Fontaine agora só consegue trafegar pouco mais do que alguns quarteirões além dos muros da instituição.

Os médicos ficam preocupados, mas seguem trabalhando, como sempre fizeram. “Você pensa, bem, eu preciso trabalhar. Então que Deus me proteja”, diz Jean Baptiste. “À medida que a situação piora, nós saímos e decidimos enfrentar os riscos. (…) Precisamos continuar avançando.”

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