Em tempos de polarização, Rainha Elizabeth II é símbolo de equilíbrio e unidade

09/09/2022 08:17
Por Renata Tranches / Estadão

O trono vazio é um choque para 87% dos britânicos que nunca conheceram outro chefe de Estado. Em tempos de polarização, apaga-se um símbolo de unidade. Os 96 anos de vida de Elizabeth estão entre os grandes capítulos da história contemporânea – 70 deles dedicados à função pública.

Nos últimos anos, preocupada com a sobrevivência da linhagem de Windsor, ela entregou parte de suas atribuições aos herdeiros, especialmente ao filho mais velho, Charles. Rainha desde os 25 anos – ela foi coroada aos 27 -, Elizabeth foi chefe de Estado de 15 premiês, começando por Winston Churchill, em uma Europa renascida da 2.ª Guerra.

Memes na internet brincavam com sua “imortalidade”. Por todo esse tempo, mais do que uma boa saúde, sua longevidade simbolizou a constância do Estado britânico, mesmo quando outras instituições cambaleavam.

Com o simbolismo da coroa, ela fortaleceu os laços com aliados e suavizou relacionamentos tensos em lugares como Índia, Rússia, África do Sul e Irlanda. Gastando muita sola de seus sapatos Anello & Davide, foram mais de 90 viagens oficiais, principalmente por países da comunidade britânica. Só presidentes americanos ela conheceu 13.

Tentando não se descolar de seus súditos, Elizabeth transformou uma monarquia imperial em uma família de nações. Em uma dessas viagens, em 1970, ao visitar Austrália, ela quebrou séculos de tradição quando, em vez de acenar de longe, decidiu caminhar pelas ruas de Sydney, sorrindo e conversando com o populacho espantado – desde então, o “walkabout” tornou-se prática regular da família real.

Visitando incansavelmente os 53 países da Commonwealth, ela manteve a unidade da comunidade de nações, da qual seguiu como chefe de Estado mesmo com a desintegração do império, que Elizabeth não conseguiu evitar – especialmente nos anos 60, quando as colônias africanas iniciaram um processo sem volta de descolonização.

Segundo disse ao Estadão o diretor de do Queens’ College, Andrew Thompson, na ocasião do aniversário de 90 anos da rainha, a diplomacia de Elizabeth II catapultou sua popularidade e levou a família real junto.

Nas relações internacionais, Elizabeth coleciona outros feitos. Foi a primeira monarca britânica a visitar a China, em 1986, uma viagem importante no esforço do Reino Unido, que se preparava para devolver Hong Kong ao controle chinês.

Durante seu longo reinado, poucos líderes receberam a deferência que a rainha reservou a Nelson Mandela, que a visitou em 1996. Os dois desenvolveram um carinho mútuo. Ela o hospedou no Palácio de Buckingham e o levou para passear de carruagem em Londres, além de oferecer-lhe uma festa no Royal Albert Hall.

Racismo

Décadas após receber a visita de Mandela, o racismo voltaria a atormentar a rainha, turbinado pelos tabloides. Seu neto, o príncipe Harry, e a americana Meghan Markle, sua mulher, afastaram-se da família real após várias queixas, entre elas, uma denúncia de racismo feita durante o programa da apresentadora Oprah Winfrey.

Para alguns, a entrevista foi uma condenação da família real no momento em que a questão da desigualdade racial atraía atenção global, após as execuções de negros por policiais brancos nos EUA. Para outros, foi um ataque à instituição, com a rainha Elizabeth II no crepúsculo de seu reinado e seu marido, o príncipe Philip, internado em um hospital.

Uma pandemia global restringiu os últimos anos da monarca. Uma das últimas imagens marcantes da rainha será a do funeral de seu marido, o príncipe Philip. Elizabeth surgiu sentada sozinha em um banco, usando uma máscara preta, seguindo as restrições nacionais impostas pela pandemia de covid-19. “Minha força e minha constância”, disse ela sobre o homem que ficou a seu lado por 73 anos.

Durante seu período no cargo, o Reino Unido entrou e saiu da União Europeia. Apesar de sua imagem sacolejando dentro de um Range Rover em sua residência de verão em Balmoral, na Escócia, ela representou a estabilidade em uma era de mudanças sociais, geopolíticas e tecnológicas aceleradas.

Monarquia se refaz após morte de Diana em Paris

Escândalos e dramas familiares foram constantes na vida de Elizabeth, todos acompanhados como folhetins por críticos e admiradores. Talvez o maior deles tenha sido o casamento de Charles e Diana, seu divórcio e a morte da “princesa do povo”.

O que começou como um conto de fadas virou um dos períodos mais difíceis da vida da rainha. Em 29 de julho de 1981, o mundo parou para assistir ao casamento. A BBC estimou que 750 milhões acompanharam a cerimônia pela TV.

A relação de Charles e Diana foi conturbada, com acusações mútuas de infidelidade – eles se separaram em 1992, ano que a rainha chamou de “annus horribilies”, quando ela teve de aturar a separação de seu filho caçula Andrew, o divórcio de sua filha Anne e um incêndio no Castelo de Windsor.

Mas pesadelo mesmo ela viveu em 1997, quando a monarquia britânica derrapou com o Mercedes-Benz de Diana em um túnel da Ponte de l’Alma, em Paris. A morte da princesa chocou o mundo e colocou em xeque a família real, criticada pela falta de empatia e por dar uma resposta lenta à tragédia.

Virada

Elizabeth começou a virar o jogo com um discurso transmitido ao vivo do Palácio de Buckingham. “Ninguém que conheceu Diana a esquecerá. Milhões de outras pessoas que nunca a conheceram, mas sentiram que a conheciam, se lembrarão dela”, disse. “Todos nós temos tentado de diferentes maneiras lidar com isso.”

Elizabeth também teve de lidar com os escândalos do caçula Andrew, acusado de abuso sexual pela garota americana Virginia Giuffre, que teria sido traficada pelo magnata Jeffrey Epstein e forçada a ter relações sexuais com o duque de York. Andrew deixou de ser chamado de Sua Alteza. Seus papéis cerimoniais, como representante da família real, foram cedidos a outros membros da realeza.

Diante das maiores crises, Elizabeth serviu de âncora para os britânicos. Na pandemia, ao confortar a população atordoada com as mortes, ela invocou um hino sinônimo de conforto na 2.ª Guerra. “Dias melhores virão”, disse, citando a cantora Vera Lynn. “Nós nos encontraremos novamente.”

Agora, os britânicos sabem que não terão uma rainha tão cedo. Com três herdeiros homens (depois de Charles e William, o terceiro na linha de sucessão é George, bisneto da rainha), o trono não deverá ser ocupado por uma mulher novamente em muito tempo.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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