Em ‘Uma Noite em Miami’, a desconstrução de quatro mitos

15/01/2021 19:08
Por Estadão Conteúdo

Em 25 de fevereiro de 1964, Cassius Clay comemorou seu primeiro título mundial dos pesos-pesados, aos 22 anos de idade, num modesto quarto de motel que aceitava negros, numa Flórida ainda segregada, com seus grandes amigos: o ativista Malcolm X, o cantor e compositor Sam Cooke, conhecido como o Rei do Soul, e o astro do futebol americano Jim Brown. A história real, lida num parágrafo numa biografia do pugilista, virou ficção na peça escrita por Kemp Powers, também autor do roteiro de Uma Noite em Miami. O filme, que marca a estreia na direção de longas da atriz Regina King e chega nesta sexta, 15, ao Amazon Prime Video, está cotadíssimo para o Oscar, inclusive seus quatro atores – Eli Goree, Kingsley Ben-Adir, Leslie Odom Jr. e Aldis Hodge.

Mais de 50 anos depois, os EUA não têm mais entradas separadas para negros e para brancos, nem o “Livro Verde” que listava os hotéis que aceitavam afro-americanos. Mas os assassinatos de George Floyd e Breonna Taylor, entre tantos outros, mostram que as coisas não mudaram tanto quanto deveriam. “Aguardo ansiosamente o dia em que este filme vai ser como uma cápsula do tempo e não algo que reflete as coisas que acontecem à nossa volta”, disse Powers, também coautor e codiretor da animação Soul, da Pixar, em entrevista ao Estadão. Ele lembra que, na época em que lançou a peça, em 2013, o adolescente negro Trayvon Martin foi assassinado na mesma Flórida.

Tanto as coisas não mudaram que ter quatro amigos que, por acaso, são homens negros conversando sobre suas preocupações e medos ainda é quase um unicórnio no cinema e na televisão americanos. Cassius Clay, que adotaria o nome de Muhammad Ali poucos dias depois, ao se juntar à Nação do Islã por influência de Malcolm X, sempre é visto como o homem autoconfiante, sem papas na língua. Aqui, sua insegurança também aparece. “Nós nunca o vimos tão jovem”, disse Eli Goree, que interpreta Cassius. “Ele não tem todas as respostas. E está com as poucas pessoas no mundo que poderiam entender o que ele estava passando “

Seu mentor espiritual, vivido por Kingsley Ben-Adir, também é visto como um ser humano, não como a figura por vezes controversa. “Regina e eu gostaríamos que as pessoas identificassem sua humanidade. A razão pela qual ele é um herói é porque ele sentia medo e ainda assim enfrentava, não porque ele não sentia medo”, disse Ben-Adir.

No roteiro, Malcolm X critica Sam Cooke (Leslie Odom Jr.) por se dedicar a músicas românticas para conquistar plateias brancas quando pessoas lutavam pelos direitos civis nos EUA. Cooke se defende dizendo que, por ser dono de seus originais, faz dinheiro e pode dar oportunidade a outros negros. “Minha ideia com essa discussão não é dizer que um está certo, e o outro, errado”, disse Powers. “Tudo depende da situação. Estou refletindo sobre meu conflito interno como homem negro nos EUA e no mundo ocidental. Precisamos de Sam Cooke e precisamos de Malcolm X. Precisamos de Malcolm X e de Martin Luther King, porque cada um deles provoca mudança de maneira diferente.”

Por isso, Aldis Hodge, que interpreta Jim Brown, a voz mais calma entre os quatro amigos, acha que o filme tem exemplos que podem ser úteis no atual momento. “Eles todos queriam o mesmo objetivo, mas tinham maneiras diferentes de chegar lá”, disse Hodge ao Estadão. “Ver essas quatro pessoas poderosas num quarto, tentando descobrir como trabalhar juntos, é monumental. E, quando digo poderosas, não é pelo dinheiro, mas pelo potencial de influência de cada um. Eles não ficam dizendo eu estou certo e você, errado. É um retrato lindo de amor fraterno “

Ninguém sabe ao certo o que os quatro discutiram naquela noite. Os diálogos e situações saíram da cabeça de Kemp Powers, com base em muita pesquisa. Mas foi um ponto de transformação para todos. Clay anunciou sua entrada da Nação do Islã, organização que Malcolm X já pensava em deixar e da qual se desligou no dia 6 de março. Jim Brown aposentou-se em 1966 para se dedicar exclusivamente ao cinema. No filme, Sam Cooke compõe sua canção de protesto, A Change Is Gonna Come. Na verdade, ele já tinha gravado a canção. Mas o momento rende uma cena poderosa em que Leslie Odom Jr. interpreta a música no programa de Johnny Carson, uma gravação real que se perdeu no tempo. Odom Jr. também compôs Speak Now, escrita com Sam Ashworth, que aparece nos créditos finais e deve ser indicada como canção original.

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