Em ‘Voz e Violão’, António Zambujo ressignifica a bossa nova

25/05/2021 15:04
Por Alberto Bombig / Estadão

António Zambujo nunca escondeu a sua admiração pela Música Popular Brasileira. Como todo apaixonado pelo gênero, o cantor e compositor português tem um mestre, uma pedra filosofal para entender essa nossa riqueza cultural tão apreciada no mundo todo: João Gilberto. É justamente para reiterar essa influência e homenagear o genial baiano que Zambujo acaba de lançar Voz e Violão, seu mais recente álbum.

Após ter se submetido a um severo isolamento social por causa da pandemia da covid-19, Zambujo conversou com o Estadão sobre esse seu novo trabalho, sobre a experiência do confinamento e o adiamento da turnê no Brasil, que estava prevista para 2020 e foi empurrada para este ano, mas que agora está marcada apenas para 2022.

Enquanto Portugal bate recordes de vacinação e retoma aos poucos a vida social e cultural, Zambujo disse que se por lá já é possível perceber se o mundo pós-pandemia será melhor ou pior: “O que é bom vai continuar bom, o que é ruim vai continuar uma m…”, disse. “A sensação que eu tenho é de que a balança está sempre muito equilibrada, a porcentagem do bem e do mal está sempre muito próxima. Vamos ter de continuar a lutar e a denunciar o que está mal, na esperança de que as coisas possam mudar.”

Por que a referência ao disco do João Gilberto de 2000?

A minha ligação com a música brasileira começou através do João Gilberto, foi por meio dele que cheguei a outros intérpretes e autores. Esse foi o último disco que ele gravou e eu gosto muito da capacidade incrível que ele tem de reinventar as canções. Tem uma versão de Chega de Saudade que é completamente diferente da original. É também um disco gravado sem grandes cuidados de produção, um disco ao vivo, live on tape, o deixaram no estúdio e ele foi tocando, algo que eu queria fazer no meu disco também. Então, foi um bocadinho por isso, e também porque resolvi homenageá-lo.

Você gravou uma canção do Caetano, ‘Como Dois e Dois’, e uma outra,’Tu Me Acostumbraste’, que não é dele, mas que também faz parte do repertório do Caetano…

Cheguei a Tu Me Acostumbraste pela versão da Chavela Vargas, muito intimista, fiquei apaixonado. Claro que conheço a versão do Caetano também, porque conheço tudo dele. Mas a minha versão, apesar de ser mais inspirada na Chavela Vargas, acabou por ficar mais próxima da versão do Caetano porque é mais ritmada. Sobre Dois e Dois, eu tinha sido convidado para participar de um disco da Gal Costa, fiquei muito surpreso, e fui matar saudades e há um disco da Gal, de lá pra trás, que tem uma versão dessa música, não estou lembrado…

Está no ‘Fa-Tal – Gal a Todo Vapor’, não?

Sim, é isso, é isso. Então, olha, juntei o Caetano com a Gal e a canção me prendeu, decidi gravá-la.

Seu álbum está indo bem em Portugal. Qual a sua expectativa para o Brasil, onde você vem alcançando grande projeção?

É ter a oportunidade de tocar no Brasil. Hoje em dia, um disco serve como um cartão de visitas, a chance de mostrar alguma coisa nova que justifique, que permita você ser chamado até uma sala de espetáculo, que permita voltar ao Brasil, como tenho vontade. Claro, primeiro espero que as pessoas gostem do disco.

Como está a vida cultural em Portugal com a pandemia?

Reabriu agora no início deste maio, com restrições, apenas 50% de lotação nas salas, distanciamento de dois metros entre as cadeiras.

Portugal teve um momento de fortes restrições de circulação de pessoas. Como você atravessou esse período? Influenciou na sua produção?

Em nada. Fiquei completamente parado, sem motivação alguma, sem fazer nada. Durante todo o confinamento fiz duas músicas que me foram encomendadas por marcas para fazer publicidade, algo que eu nunca tinha feito na minha vida. Eu não tenho o hábito de ficar em casa vendo o que está acontecendo no mundo, não ficar indiferente a isso e pegar o violão para compor, não consegui.

No geral, qual o seu processo de criação?

Não tem uma rotina. Estou em lugar qualquer, vem a melodia, eu a registro no celular e depois vou desenvolver essa ideia. Faço muitas parcerias também, não tem uma regra.

A cena musical portuguesa vive um momento interessante, talvez, mais até do que o Brasil em termos de música popular. Você concorda?

Quando Rodrigo Amarante está lançando um disco novo, já está bom (a cena do Brasil). Por conta do fechamento da pandemia, estão surgindo muitas coisas novas. As pessoas estavam à espera de que os teatros fossem reabertos para poderem apresentar seus discos. Há vários gêneros aqui, vocês aí no Brasil conhecem muito outro gênero musical português que não seja ligado a uma tradição, associado ao fado. Mas há coisas bastante interessantes, ligada ao indie, ao rock, e a maioria delas cantada em português, ainda que haja alguns intérpretes que cantam e compõem em inglês…

Como a Elisa Rodrigues, por exemplo…

Sim, a Elisa, e tem uma banda bastante interessante chamada Black Mamba, há muita coisa boa, mas no Brasil acredito que também.

Como você acha que vai ser o mundo pós-pandemia? O que você está percebendo da reabertura em Portugal?

O que é bom vai se manter bom e o que é mau vai continuar uma m… Acho que não vai mudar muita coisa. A humanidade, como já foi comprovado nesta pandemia, é capaz de fazer o melhor e o pior. A sensação que eu tenho é de que a balança está sempre muito equilibrada, a porcentagem do bem e do mal está sempre muito próxima. Vamos ter de continuar a lutar e a denunciar o que está mal, na esperança de que as coisas possam mudar.

Como está sua expectativa de voltar ao Brasil?

Nós tínhamos uma turnê marcada para 2020 e que depois passou para 2021 e agora já está lá em 2022. Como está a vacinação?

Devagar, mas avançando.

Bom, a turnê ficou para janeiro e fevereiro de 2022.

TRIBUTO A JOÃO GILBERTO E HOMENAGEM A CAETANO VELOSO

António Zambujo talvez seja o mais brasileiro dos artistas portugueses e já pode ser considerado um expoente da música cantada na língua materna de Eça de Queiroz, Machado de Assis, Amália Rodrigues e Vinicius de Moraes. Disponível nas principais plataformas digitais, Voz e Violão é o nono álbum (o oitavo com canções originais) do músico, compositor e intérprete nascido em Beja (Alentejo), em 1975.

No título desse mais recente trabalho de Zambujo, uma homenagem ao último disco de estúdio de João Gilberto, morto em 2019 e que completaria 90 anos no dia 10 de junho. Em ao menos uma das faixas, há um “tributo” a Caetano Veloso, que, ao lado de Chico Buarque, também está entre as maiores influências da obra do português (ele tem um álbum só com canções de Chico, Até Pensei que Fosse Minha, de 2016).

Curiosamente, o disco homônimo do “papa da bossa nova”, lançado em 2000, virou lenda por supostamente ter marcado um estremecimento nas relações entre Caetano, que o produziu, e João Gilberto. Não era para ter sido um trabalho apenas de voz e violão: Jaques Morelenbaum ia colocar cordas, mas João, como de costume, não gostou do resultado e o projeto foi mudado, após um estresse entre os envolvidos na empreitada.

Para a história, o que interessa é: ficou sendo o único disco de estúdio de João apenas com voz e violão, ou seja, a quintessência do mestre. É justamente essa volta ao essencial que o álbum de Zambujo, com 13 faixas, tenta resgatar na obra do português, que anteriormente já gravou até com a participação da Orquestra Sinfonietta de Lisboa. Os destaques deste novo álbum, além de Como Dois e Dois (Caetano Veloso), são Lote B e Visita de Estudo. Mas as influências do disco não se limitam à MPB e à bossa nova, o canto alentejano, o fado e o pop também se fazem presentes. Um álbum intimista e gostoso de ser ouvido.

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