Envio de força internacional para combater gangues no Haiti divide opiniões no país

12/10/2023 07:01
Por Associated Press / Estadão

Estrangeiros armados são recebidos com hostilidade na maioria dos países do mundo.

Mas a saída de soldados e policiais armados do Haiti em 2017, depois de duas décadas nas ruas, ajudou criminosos a tomarem o controle de boa parte do país. As gangues praticaram tantos roubos, estupros e sequestros que os haitianos comemoraram na terça-feira a notícia de que o Conselho de Segurança da ONU havia aprovado o envio de uma força armada internacional para o Haiti.

As notícias da votação – que autorizou o destacamento de uma força liderada pelo Quênia pelo prazo de um ano para ajudar a reprimir as gangues violentas – dominou as conversas e os programas de rádio e televisão.

“É como se Deus tivesse ouvido as orações dos haitianos, e estivesse enviando ajuda”, diz Wensley Johnson, de 40 anos.

Johnson precisou fugir de sua casa este ano depois que as gangues saquearam a comunidade onde vivia, construída por pessoas que sobreviveram ao devastador terremoto de 2010 no Haiti. Preocupado com a interminável violência das gangues, Johnson mandou o filho e a enteada irem morar com a mãe na região rural, mas o trabalhador da construção civil luta para conseguir cuidar deles.

Obras foram interrompidas em vários locais porque as gangues tomaram o controle dessas áreas, e Johnson não está conseguindo encontrar trabalho.

“A estabilidade seria fundamental para todos voltarem às atividades normais”, diz ele, acrescentando que está aliviado com o envio de uma força armada internacional.

“Nossas forças não têm efetivo para combater as gangues com as armas que possuem”, diz.

A Polícia Nacional do Haiti já lançou várias operações contra as gangues, mas o departamento não tem recursos, nem pessoal, com cerca de 10.000 agentes da ativa em um país com mais de 11 milhões de pessoas.

A missão comandada pelo Quênia representaria a primeira vez em quase 20 anos que forças seriam enviadas ao Haiti. A missão da ONU de 2004 se encerrou em 2017.

A próxima missão deve ser liderada pelo Quênia, e Jamaica, Bahamas, e Antígua e Barbuda também comprometeram efetivo. A missão, não vinculada à ONU, seria reavaliada após nove meses, e financiada com contribuições voluntárias – os EUA prometeram até US$200 milhões (R$1 bilhão). O ministro das Relações Exteriores do Quênia disse que o envio poderia acontecer no começo de janeiro.

“Eles deveriam chegar antes de janeiro”, reclama Peter John, um carpinteiro de 49 anos que ouviu as notícias em um pequeno rádio preto e branco em sua oficina, onde fabrica camas, mesas e armários.

Ele teme que a violência de gangues continue aumentando.

“Numa manhã você ouve falar de caras tomando uma área, matando e estuprando crianças, deixando todos sem casa, isso é assustador”, diz. “Uma força enviada ao nosso país teria condições de resistir.”

Enquanto isso, diz, os haitianos lidarão com as gangues da única forma que sabem: por meio de um levante violento conhecido como ” bwa kale ?, que matou cerca de 350 pessoas desde que começou, em abril.

“A população vai acabar com as vidas deles. Eles fizeram as pessoas sofrerem demais”, diz ele sobre as gangues.

Mais de 2.400 pessoas foram mortas, segundo as notificações, entre janeiro e meados de agosto deste ano; mais de 950 foram sequestradas, e outras 902 foram feridas, pelas estatísticas da ONU. A violência contra mulheres e crianças, em especial, aumentou.

Entre as pessoas sequestradas e torturadas estavam amigos de Jannette Boucher, uma lojista de 37 anos que vende roupas femininas e infantis. Ela mesma escapou de um ataque de gangues no começo deste ano enquanto dirigia sozinha. As gangues atiraram em seu carro, quebrando uma janela, e ela pisou no acelerador e fugiu.

“Sim, estou animada”, diz ela sobre o envio da força internacional. “Já está na hora de o Haiti receber algum apoio real.”

Mais de 200 mil haitianos perderam suas casas para as gangues, que colocam fogo nas comunidades e estupram e matam os moradores na tentativa de conquistar o território de gangues rivais.

As intervenções internacionais anteriores no Haiti deixaram muitas pessoas desconfiadas e raivosas.

A missão de estabilização da ONU lançada em 2004 foi marcada por um escândalo de abuso sexual e pela introdução do cólera, que matou quase 10 mil pessoas.

“Eles deixaram lembranças ruins no Haiti”, diz Jean-Pierre Elie, um professor particular de 60 anos de idade, sobre as intervenções anteriores.

Ele diz que apoia o envio das forças armadas porque “está insuportável viver no Haiti”, mas teme que o passado se repita.

“Os soldados às vezes saem do controle”, conta. “É como se não se reportassem a ninguém. Fazem o que querem.”

Johan Lefebvre Chevallier, diretor para o Haiti da organização sem fins lucrativos Mercy Corps, diz ter esperança de que a força armada internacional respeite os direitos humanos e restaure alguma estabilidade.

“O pior resultado seria que essa nova intervenção aumentasse ainda mais a violência e oprimisse aqueles que enfrentam o peso desta crise humanitária e de segurança”, diz.

Críticos da nova missão também alertaram sobre os abusos cometidos no passado pelas forças policiais quenianas, mas os apoiadores dizem que a resolução que autorizou o envio da força tem disposições rígidas para prevenir os abusos, e exige uma gestão adequada das águas residuais.

O Conselho de Segurança da ONU aprovou a resolução quase um ano depois da solicitação, feita pelo primeiro-ministro Ariel Henry e 18 autoridades do governo, de envio imediato de uma força armada internacional para combater as gangues que dominam o país.

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