Escravidão no Brasil: quando o hoje esquece o ontem

01/07/2023 08:00
Por Gastão Reis

A temática da escravidão é sempre relevante, desde que seja vista sem o tapa-olho dos valores de hoje e dentro de uma análise que leve em conta a História Comparativa. São duas regrinhas pouco seguidas no Brasil. Os valores do hoje embutem toneladas de emoção que nos deixam os olhos rasos d’água e nos impedem de ver com clareza o problema, em sua época, contrapondo-o, ato contínuo, ao que ocorria no resto do mundo.

No domingo, 25/06/2023, a competente colunista Dorrit Harazim publicou, no Globo, um artigo intitulado “Fronteiras”, em que nos conta, inicialmente, como foi bater na Exposição Mundial realizada na Bélgica, em 1897, cerca de 130 anos atrás. Ato contínuo nos diz que “tem mais a ver com o Brasil de hoje do que a malfadada expedição da empresa Ocean Gate”, dona da cápsula Titan que implodiu no Atlântico Norte. Mas faltou substância na comparação feita por ela com o Brasil de hoje ao não explicar a rota histórica que nos atropelou.

Ainda sobre a Bélgica, ela nos informa que o anfitrião era o rei belga, Leopoldo II, que buscava “atrair investidores e convencer a população belga da importância de manter a imensidão e a riqueza do Congo sob seus domínios”. O que mais chamou a atenção do público de 40 mil visitantes diários foi a montagem de três aldeias nativas, de terra batida, em que os atores eram os 267 homens, mulheres e crianças, trazidos à força do Congo, que reproduziam seus hábitos e costumes. Havia ainda uma quarta aldeia em que um abade fazia a demonstração de como educar e civilizar jovens africanos.

Harazim ressalta que a Bélgica não constituía exceção entre os países europeus, como França, Alemanha, Suíça, Espanha, Reino Unido, Holanda e Itália, em que “zoológicos humanos foram atrações consagradas desde o início do século XIX.” A diferença foi que a Bélgica, através do então rei Balduíno, ainda manteve tais exposições até 1958, ano em que as guerras de libertação já estavam em pleno andamento. Por fim, nos informa que o inglório Palácio Colonial do rei Leopoldo II foi transformado no Africa Museum.

Ela não menciona, entretanto, dois fatos importantes. O primeiro diz respeito ao lado educacional. Às vésperas da independência do Congo, não havia um único oficial negro que tivesse cursado uma academia militar belga. O negro mais graduado ocupava o posto de sargento-geral do Congo belga. Simplesmente não havia a menor preocupação em formar dirigentes locais. O segundo era a notória brutalidade do rei Leopoldo II, incluindo trabalho forçado, sequestros e assassinatos de rebeldes. A punição típica no exercício do controle era cortar as mãos de trabalhadores congoleses ou de seus filhos.

No final do artigo, em tom crítico aos europeus e a nós, Dorrit expressa sua revolta contra a “animalização e desumanização da pele negra – disso o Brasil entende”. Esta última afirmação sobre o Brasil nos abre uma porta para entender o porquê chegamos a tal ponto na dita república brasileira.

A escravidão no Brasil, desde os tempos coloniais, passando pelo Império, tem marcadas diferenças em relação ao resto mundo, que não são do conhecimento do público em geral. Poucos se dão conta deste excepcionalismo brasileiro, que muito avançou ao longo de quase quatro séculos, e depois retrocedeu com a chegada da república. Vejamos.

O primeiro ponto se refere às alforrias, muito raras no resto do mundo, e muito presentes em nossa história. Em 1780, a província de Minas Gerais, a mais populosa, tinha 394 mil habitantes, sendo 174 mil eram escravos (44%). Mas dos 220 mil moradores restantes, dois terços já eram negros forros (148 mil). Ou seja, algo sem paralelo no mundo de então quanto a alforrias.  

 

O segundo ponto diz respeito ao que ocorreu ao longo do Império. O processo de alforrias foi sempre incentivado. Quando a Princesa Isabel assinou, em 1888, a Lei Áurea 80% dos descendentes de africanos já eram livres. Por vota de 1860, cerca de 60% da população de origem africana, na cidade do Rio de Janeiro, já era livre, podendo frequentar escolas públicas. Visitantes europeus e americanos se espantavam com a presença de negros e mulatos na alta administração do Império. Novamente, nosso excepcionalismo, sem nada parecido no resto do mundo em que havia escravidão.

Na primeira matrícula geral de escravos, no nosso primeiro censo de 1872, o número de cativos era de 1.510.806, que caiu para 720.000 na última matrícula geral, de 30/03/1887, uma queda de mais de 50% no total de escravos em apenas 15 anos. A luta contra a escravidão foi feita de modo paulatino, muito mais profissional e pacífico do que aconteceu nos EUA.        

Nas versões vigentes, quase não se leva em conta esse volumoso processo de alforriamento. O número de negros e mulatos que se distinguiram como jornalistas, advogados, médicos e engenheiros, em meados e final do Império, respalda o que disse o jornalista negro da Folha de São Paulo Tom Farias de que o século de ouro do negro no Brasil foi o XIX. Já nos EUA, após a emancipação por lei em 1863, passaram quase 100 anos, discriminando os negros nas escolas, bares, restaurantes, banheiros etc, situação que só foi revertida em 1960 na luta dos negros pelos direitos civis.

Dorrit Harazim e segmentos do movimento negro parecem não se dar conta de que, no início da república, entrou na ordem do dia o discurso do embranquecimento junto à intelectualidade e outros segmentos do andar de cima.  Queriam embranquecer a população para que o país alcançasse níveis mais elevados de crescimento e civilização.  A necessidade imperiosa de implantar uma educação pública de qualidade foi esquecida até hoje. Basta aferir a posição relativa (e vergonhosa) do Brasil nas pesquisas internacionais.

A república nasceu desacreditando de seu próprio povo, em especial do povo negro, mulato e pardo, patrocinando um processo de exclusão. Não sur-preende, pois, que o regime esteja patinando em seus desacertos desde 1889. 

Entrevista minha intitulada Quando o Brasil perdeu o rumo da História, com mais de 23 mil visualizações. Assista abaixo:

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