Ettore Scola foi o último elo com uma grande geração do cinema italiano

10/05/2021 14:07
Por Luiz Zanin Oricchio / Estadão

Ettore Scola estaria completando nesta segunda-feira, 10 de maio, 90 anos de idade. Morto em 2016, aos 84 anos, foi o último elo com uma grande geração do cinema italiano, talvez a maior de todos os tempos. Embora mais jovem, ainda mantinha contato com os fundadores do neorrealismo italiano, movimento inaugurado em 1945 com o antológico Roma – Cidade Aberta, de Roberto Rossellini. Além de Rossellini, as figuras tutelares desse movimento foram Vittorio De Sica e Luchino Visconti, além de Cesare Zavattini, roteirista e mentor intelectual do grupo.

O neorrealismo nasce diretamente da tragédia da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sob a inspiração da resistência dos “partiggiani” em sua luta antifascista e com a ideia de que aquilo não poderia se repetir jamais. E, para não se repetir, teriam de ser evitadas as condições que a haviam gerado. Daí o caráter social da maioria dos filmes, atentos para o registro sem disfarce da realidade e de suas contradições mais profundas. Foi um impulso inicial, que levava na alma o heroísmo dos combatentes contra o fascismo, mas murchou quando mudaram as condições do país.

Mas, se o neorrealismo é datado, sua influência mostrou-se duradoura, inspirando os cineastas das gerações seguintes. Percebe-se seu DNA presente até hoje, pelo menos na melhor produção italiana. Influenciou outras cinematografias, como a brasileira, através em especial da obra de Nelson Pereira dos Santos, precursor do Cinema Novo.

Nascido em 1931, Scola conviveu de forma mais intensa com a segunda geração do neorrealismo, em particular com Federico Fellini, de quem foi colega de jornal e, em seguida, parceiro de cinema. Fellini viera de Rimini e Scola, de Trevico. Encontraram-se em Roma. Fellini era onze anos mais velho que seu colega e, de certa forma, o apadrinhou no início da carreira jornalística. Esses fatos são lembrados no último filme de Scola, o comovente Que Estranho Chamar-se Federico (2013), homenagem ao amigo, morto em 1993, 20 anos antes.

A amizade perdurou. Fellini faz até uma ponta em um dos maiores filmes de Scola, Nós que nos Amávamos Tanto (1974), retrato da geração que havia sonhado um mundo melhor e, após a experiência de 1968 e em pleno desvario dos anos de chumbo italianos, via-se obrigada a fazer um balanço político negativo, quase falimentar. Este, no entanto, temperado pela ternura e o conforto da amizade.

Artista de orientação progressista, mas nunca panfletário ou sectário, Scola mantinha-se atento aos conflitos e contradições sociais, sem, por isso, esquecer o caráter frágil e contraditório de seus protagonistas. Por isso, outro de seus melhores filmes é Feios, Sujos e Malvados (1976), em que descreve o sofrimento, mas também a brutalidade dos desvalidos, sem apelo a caricaturas ou ao bom-mocismo da caridade cristã. Neste ponto, dialoga de maneira explícita com outro mestre, o espanhol Luis Buñuel.

Em outro registro, em Um Dia Muito Especial (1977), mostra como é possível compor a síntese de dramas pessoais e tragédias coletivas. Sophia Loren faz a boa esposa italiana que permanece em casa enquanto marido e filhos vão assistir e aplaudir o encontro entre Mussolini e Hitler, selando a aliança entre a Itália fascista e a Alemanha nazista. No edifício, permanece apenas a mulher e mais um inquilino, desinteressado daquela festa fascista, o homossexual vivido por Marcello Mastroianni. Os dois se aproximam, nesse dia muito especial, juntam por um momento as respectivas solidões, mas são incapazes de abandonar seus casulos emocionais.

Pelas escolhas temáticas, vê-se que Scola tem atenção especial com a História, essa velha senhora com agá maiúsculo, dona dos episódios e processos que mudam o rumo da humanidade. Mas conhece os atalhos para transitar entre o grande e o pequeno, entre o político e o pessoal, entre o épico e o íntimo, como em Um Dia Muito Particular.

Em Casanova e a Revolução (1982), traz de novo Mastroianni, agora para viver o arquétipo do sedutor, o veneziano Giacomo Casanova. Dialogando com o John Ford de No Tempo das Diligências, faz de uma carruagem uma espécie de microcosmo da Europa durante a Revolução Francesa. Como pano de fundo, a prisão do casal real em fuga, Luís 16 e Maria Antonieta que tentava deixar o país. A prisão acontece em 1791 na pequena cidade de Varennes, no norte do país. Foi fato importante para os rumos da Revolução Francesa. Mas guardamos do filme nem tanto seu magnífico painel histórico como a íntima melancolia de um Casanova envelhecido e já inapto para a arte do amor.

Em O Baile, Scola ousa fazer de um salão de danças francês outro microcosmo, o da sociedade europeia, mostrada em suas passagens mais marcantes, dos anos 1920 a 1983. Sem diálogos, apenas com música e atores. Numa das cenas mais tocantes, um antigo bailarino, o mais hábil do salão, insiste em dançar, mesmo tendo perdido uma perna numa das trágicas guerras do continente.

Em sua trajetória, Scola reflete sobre outros temas do seu tempo – a crise do cinema em Splendor (1988), a débâcle do Partido Comunista Italiano em face do neoliberalismo dominante em Mario, Maria e Mário (1993), o caráter corrosivo da desigualdade social em A História de um Jovem Homem Pobre (1995), a brutalidade da competição, eleita como sal da terra em um mundo que perdeu sua alma, em Concorrência Desleal (2001). São filmes que merecem revisão. Todos nos dizem alguma coisa importante e o fazem através do estilo elegante de Scola.

Numa carreira de tantos pontos altos, é difícil encontrar os cumes dessa trajetória magnífica. Talvez esteja num conjunto de obras. Nós que nos Amávamos Tanto, Um Dia Muito Especial, Casanova e a Revolução e este extraordinário A Viagem do Capitão Tornado (1991), com uma atuação magnífica de Massimo Troisi como Pulcinella.

Este último talvez possa fazer as vezes de síntese da “poética” de Scola. Inspirado em Capitaine Fracasse, de Théophile Gautier, viaja pela História através do improviso da commedia dell’arte e estabelece uma relação de continuidade da aventura humana ao fazer o passado ressurgir na cena da Paris contemporânea. É nunca menos que brilhante.

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