Fábrica Dona Isabel: do algodão ao tecido
Em meio ao apito das caldeiras e ao som das máquinas a todo vapor, era ali que a mágica acontecia: milhares de quilos de algodão transformados em tecido diariamente. E assim como a matéria-prima, funcionários que ainda crianças ingressaram na Fábrica Dona Isabel se viram diante desse mesmo cenário de metamorfose.
“Foi a grande escola da minha vida”. Aos 73 anos, Renato Marchiori relembra os tempos em que trabalhou na Companhia Dona Isabel. Ele, que atravessou os portões aos 16, de lá saiu como chefe da manutenção elétrica e geral. Foram 34 anos de dedicação à empresa e muitas histórias para contar.
“Grande parte do que eu sou hoje, devo à minha atividade dentro da Fábrica Dona Isabel. Comecei praticamente como um office boy e de lá saí assumindo uma gerência administrativa, então vi de tudo que você possa imaginar. Minha vida toda foi, realmente, pautada lá dentro, desde garoto até me aposentar”.
Renato ingressou na Dona Isabel em 1960, época em que, segundo ele, havia mais de 1.800 funcionários. Colaboradores esses que, em seus respectivos setores, contribuíram para que a marca se tornasse reconhecida internacionalmente.
“A fábrica foi fundada no dia 08 de maio de 1889 e tem o nome de Dona Isabel em homenagem à princesa Isabel que, um ano antes, aboliu a escravidão no Brasil. Quando trabalhei lá eram exportados fios para a Europa. Era um sistema complexo de fabricação que ia desde o algodão até o tecido pronto. Havia filiais em Além Paraíba, Teresópolis e Bangu”, diz Renato.
O papel dos operários era inestimável. Prova disso foi a necessidade de construção de um complexo habitacional próximo ao prédio da indústria na década de 40. De acordo com Marchiori, a medida facilitava o acesso a eles em casos de emergência.
“A vila se chamava Dona Isabel e, depois de um tempo, foi nomeada Luís Carlos Soares em homenagem a um funcionário bem antigo da fábrica. Luís foi quem, inclusive, me indicou a trabalhar na Dona Isabel”, explica ele.
Renato lembra também do intrigante ‘relógio de ouro’, ainda hoje mencionado pelos petropolitanos. “O item era dado aos funcionários com cinquenta anos de fábrica. Muitos trabalharam lá quase que por suas vidas inteiras. Hoje há o fundo de garantia, mas naquela época era uma espécie de homenagem prestada”.
Entre os que mais se dedicaram à firma está o pai do vigia Antônio Carlos Sassani. “Meu pai trabalhou na Dona Isabel por mais de 45 anos, sendo que, depois de sair de lá, ainda atuou na Cometa por mais 20. Ele faleceu aos 82 anos e teve mais de seis décadas de carteira assinada”.
Apesar de não ter levado para casa o brinde dourado, o pai de Antônio fez questão de transmitir princípios de ouro aos filhos, começando pela garra. “Minha avó veio da Itália na época da guerra, escondida no fundo do navio junto com os escravos. Quando ela chegou aqui no Brasil tinha uns 13-14 anos e teve como primeiro emprego a Cometa, assim como eu. Não tínhamos outra opção a não ser começar a trabalhar cedo”.
Hoje aos 58 anos, Antônio Carlos, que mais tarde trabalhou em outras três indústrias, se orgulha em olhar para trás e ver o quanto conquistou. “As pessoas estudavam até o ginásio e não tinham condições de seguir em frente. Por parte da família do meu pai, minha filha, Lidiane Cristina, foi a primeira a se formar na faculdade. Ela se formou em fisioterapia em janeiro deste ano”, diz orgulhoso.
“A melhor escola das nossas vidas, em termos profissionais e de formação pessoal, foram as fábricas por onde minha família passou. Graças a elas consegui, assim como meus irmãos, me formar no segundo grau. Foram conquistas maravilhosas”, conclui Antônio.
O que a história conta
Em cerca de um século de funcionamento, um operário da Companhia Dona Isabel em especial deixou sua marca. O mestre em História Pedro Paulo Aiello Mesquita, autor do livro ‘A Formação Industrial em Petrópolis’, enfatiza a figura de Leonardo Candú, ex-funcionário da fábrica que, em 1935, se tornou um ícone nacional, símbolo do movimento operário.
“Os operários daqui de Petrópolis eram, em massa, socialistas ligados à ANL, Aliança Nacional Libertadora. A disputa entre eles e os integralistas era constante. Naquele ano, com a proibição da ANL após a Intentona Comunista, os operários ficaram revoltados e marcaram uma grande manifestação na Praça Dom Pedro II”.
O professor explica que assim que a passeata chegou à Rua João Pessoa, bombas foram arremessadas nos manifestantes, sendo uma das vítimas, Leonardo Candú. “A sede do movimento integralista ficava ali naquelas imediações. Candú foi atingido e, apesar de ter sido socorrido, faleceu, gerando indignação por parte de outras categorias e cidades do país”.
Comoção. Foi esse o sentimento de quem viu as atividades da Dona Isabel serem encerradas na década de 90. Os ponteiros de seu emblemático relógio parados e os cadeados nos portões. Quem hoje observa sua fachada talvez não imagine as milhares de vidas que, um dia, foram pautadas lá dentro.