Faoro e os donos (“Republicanos”) do poder

11/06/2022 08:00
Por Gastão Reis

O livro de Raymundo Faoro, “Os Donos do Poder – Formação do patronato político brasileiro”, acabou se tornando um clássico da literatura política nacional. Na edição de 1958, foi recebido com pouco entusiasmo naqueles tempos em que o otimismo de JK dominava a cena política. Sem dúvida, há que se reconhecer seu esforço interpretativo das travas que impediam o país de atingir o crescimento sustentado. A questão que se impõe neste artigo é se ele identificou corretamente as referidas travas, sendo a maior delas para ele o estamento burocrático-administrativo que nos inferniza a vida.

Ler as mais de 900 páginas da última edição do livro de Faoro acaba nos levando a um certo fatalismo em relação ao futuro do Brasil. É como se estivesse sempre preso às artimanhas do tal estamento burocrático-administrativo, que atua como uma rede limitadora dos movimentos e das iniciativas indutoras ao pleno desenvolvimento do país. A ampla presença do Estado cerceador das forças de mercado, além do necessário, seria nossa sina.

É verdade que livros recentes como “A Moeda e a Lei – Uma história monetária brasileira (1933-2013) e “Erros do Passado, Soluções para o Futuro – A Herança das Políticas Econômicas Brasileiras do Século XX”, do economista Affonso Celso Pastore vão na linha da presença sufocante do Estado. Pior ainda: adoção e implementação pelos governos militares de 1964 a 1985 de pautas que fizeram a felicidade da esquerda brasileira (e nossa infelicidade…) no que tem de mais tacanho a tal ponto de 2/3 das empresas estatais, com sua brutal ineficiência, terem sido criadas após 1964.

Passemos agora a um contraponto a Faoro, pondo em relevo aspectos culturais, econômicos, políticos e sociais, que ele não levou na devida conta, e que foi, de fato, a experiência dos períodos da colônia e do Império em nossa história, atualmente muito distorcida, com flagrante desrespeito aos fatos.

As terras portuguesas foram ocupadas pelos romanos por cerca de 600 anos, seguida da dos visigodos, povo de origem germânica, por 200 anos, e algo em torno de 7 séculos em que os mulçumanos dominaram a região conhecida então como Lusitânia. A tradição do governo local, oriunda dos romanos e dos visigodos, resistiu aos séculos de ocupação árabe. Ou seja, culturalmente foi algo que se consolidou e se manteve ao longo do período colonial brasileiro. Traduzido em miúdos, isto foi, na prática, alto grau de autonomia do município na condução de sua vida no dia-a-dia. A cobrança de impostos e a administração da justiça estavam incluídas nessas atribuições do governo local. Plena vigência do chamado princípio da subsidiariedade.

Na esfera financeira, não se pode passar por cima do fato de que de cada 100 cruzados arrecadados num município, denominado vila na época, 70 eram retidos pelo Concelho, com “c”, hoje, prefeitura. E esse processo de autonomia municipal não foi um momento fugaz e breve do poder local, como nos diz Faoro. Durou séculos, e, no Império, dificilmente o município teria retido menos do que a metade do que era arrecadado em seu território. O estrangulamento financeiro dos municípios toma corpo após a chegada da república. Hoje eles só retêm cerca de 20%, 10% diretamente e outros 10% dependentes de transferências federais, sempre repletas de muita burocracia e eventuais desvios para fins confessáveis (e inconfessáveis).

Na esfera política, o país gozava da tradição parlamentarista. O prefeito do município era sempre o vereador mais votado. Normalmente, sua sala de trabalho era contígua ao local onde se reuniam os vereadores membros do então chamado concelho. Ainda me lembro de uma conversa poucos anos atrás em Portugal, na Câmara Municipal de Coimbra. Tomei conhecimento de que os vereadores tomavam parte ativa na administração do município, dedicando-se às atividades legislativas apenas um dia por semana.

O historiador José Murilo de Carvalho, no trecho a seguir não faz coro com Faoro: “A limitação de renda era de pouca importância. A maioria da população trabalhadora ganhava mais de 100 mil-réis por ano. Em 1876, o menor salário da administração pública era de 600 mil-réis. O critério de renda não excluía a população pobre do direito de voto. Dados de um município do interior de Minas Gerais, em 1876, mostram que os proprietários rurais representavam apenas 24% dos votantes. O restante era composto de trabalhadores rurais, empregados públicos, e alguns poucos profissionais liberais. As exigências de renda na Inglaterra, na época, eram muito mais altas, mesmo depois da reforma de 1832. A lei brasileira permitia ainda que os analfabetos votassem. Talvez nenhum país europeu da época tivesse legislação tão liberal”. São fatos, provavelmente, não pesquisados por Faoro.

Na esfera social, a dominação árabe por sete séculos fez com que os portugueses se habituassem a conviver com pessoas de pele morena e cabelos pretos e as respeitassem ainda que a contragosto por questões religiosas. O ditado elogioso quando se referiam a alguém que “trabalha feito um mouro” dá bem a medida de sua visão dos ocupantes árabes.

É evidente a fragilidade de Faoro na esfera econômica, em boa medida, por falta de informações só reveladas por estudos recentes. Ele até reconhece que as mãos do rei estavam anuladas pela distância. Ou seja, em função da vastidão territorial, o controle da Coroa era muito frágil. As leis de mercado se impunham. Tanto isto foi fato que a renda per capita por volta de 1800 se equiparava a dos EUA. Mais: as grandes fortunas da colônia eram maiores do que as da metrópole. A economia da colônia já superava a portuguesa quando Dom João VI veio para cá.

Em suma, não foi o legado da Colônia ou do Império que impediu o país de avançar rapidamente, mas sim a quebra da moldura político-institucional perdida em 1889: regime parlamentarista, em que um governo só sobrevive se houver confiança nele; poder moderador para controlar o andar de cima; respeito no trato do dinheiro público; liberdade de imprensa; combate à desigualdade; e corrupção sob controle. Este não é o histórico da república.

Faoro errou o alvo: a república e seus desmazelos é que nos travou.

Nota (*): Vídeo do autor, “As estatais e você”, no DOIS MINUTOS COM GASTÃO REIS. Continua atual. Basta clicar no link abaixo para assistir: https://www.youtube.com/watch?v=zkaVqy-sy14

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