FHC, Nelson Rodrigues e a unanimidade

15/09/2020 11:10

                                  

Confesso minha surpresa, nesses últimos dias, com as reações ao artigo de FHC, “Reeleições e crises”, publicado em O Globo, de 6.9.2020. Ele diz que errou ao aceitar a emenda constitucional que lhe permitiu ser reeleito em 1998. Diversos articulistas concordantes elogiaram sua coragem ao admitir que pisou na bola. De repente, num passe de mágica, os grandes problemas político-econômicos nacionais parecem se resumir na suposta loucura da reeleição. Diante de minha reação visceral ao equívoco de FHC e demais comentaristas, minha mulher comentou que muito mais grave é ter eleições a cada dois anos. A boa gestão acaba perdendo de lavada para a eleição que vai acontecer no ano seguinte após o primeiro ano de mandato. Eleição sempre na ordem do dia. Administrar bem fica para o popular Dia de São Nunca.  

          Mas não é só isso. Tem muito mais coisa envolvida e omitida pela grande mídia no seu dia a dia.  A frase que logo me veio à mente foi a velha tirada de Nelson Rodrigues: “Toda unanimidade é burra”. Em vida, ele foi visto como o grande reaça, em especial na defesa do golpe de 1964, um vetusto problema brasileiro não percebido por ele cuja raiz data de 1889: militares na política e seus estragos. Em compensação, acertou em cheio em questões fundamentais que o tempo, senhor da razão, lhe foi favorável. Quando da visita de Sartre ao Brasil, em 1960, o filósofo profetizou: “O marxismo é inultrapassável”. Nelson zombou dele dizendo que era uma opinião (malsucedida) de torcedor do time do Bonsucesso. Mais: segundo ele, nada impediria que dentro de quinze minutos o marxismo fosse ultrapassado. Demorou mais tempo, mas implodiu em 1989.

         Agora, cabe explicar quão bem fundamentada está a minha discordância diante dessa desinformada unanimidade. O Brasil republicano vive, em toda sua intensidade, a síndrome dos 30 anos. Recapitulemos. A inflação só foi resolvida após três décadas em que a conta foi paga por quem menos podia: aqueles na faixa de menos de dois salários-mínimos. A reforma da previdência correu na mesma raia desavergonhada de tempo perdido, só agora votada, e assim mesmo sem acabar com alguns privilégios inaceitáveis. A reforma trabalhista, finalmente realizada, conseguiu nos livrar, em boa parte, da longa sombra de Vargas, que vagou perdida por mais de meio século. O ditador produziu o milagre de sindicatos sem sindicalizados, mas manipuláveis pelo poder de plantão, na base da contribuição compulsória responsável pela crônica falta de representatividade dos mesmos, patronais e de trabalhadores.

          Mas o Patropi parece que se viciou na cocaína dos 30 anos. A reforma administrativa, depois de muito jogo de peteca entre o governo e o congresso, estaria encaminhada. O surpreendente é que o presidente Bolsonaro só concor-dou que fosse adiante desde que não atingisse os atuais funcionários públicos nos três níveis de governo. Embora tenha podado alguns absurdos hoje existentes como férias de mais de 30 dias, progressão ao topo das carreiras excessivamente rápida, propor um prazo maior para que o funcionário se torne estável e outras alterações, a reforma deixa a desejar – e muito – para ter pleno efeito. Pode levar o tempo de quase uma geração.  

           O encolhimento tão necessário do setor público brasileiro, que exige cortes de despesas para liberar recursos para o investimento público que, pelo jeito, vai marcar passo. De fato, a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento e a nova legislação para o setor elétrico terão efeitos positivos em termos de nossa infraestrutura em frangalhos. Mas vão sobrecarregar a capacidade de investimento do setor privado face a um setor público que praticamente não investe. Outros projetos de lei (desburocratização do licenciamento ambiental, concessões na área do pré-sal, dentre outros) estão na fila, mas na morosidade de sempre. 

        Configurado esse panorama bastante complexo e difícil de administrar, voltemos à questão da reeleição e sua irrelevância face aos reais problemas políticos do País. O Brasil carece de um tripé institucional, que já tivemos ao longo do século XIX: chefia de Estado separada da de governo; o voto distrital puro com revogação de mandato (recall); e o controle externo para valer do Judiciário. No caso destes dois últimos itens, dispositivo presente na carta de 1824 conferia ao poder moderador a faculdade de dissolver a câmara e suspen-der juízes para julgamento final por um tribunal. Vejamos cada um deles.

      A chefia de Estado exercida por outra pessoa, e não cumulativamente pelo chefe de governo, como ocorre no presidencialismo, é fundamental. Quando as duas funções se juntam numa única pessoa produzimos um ser que realiza a proeza de ser o fiscal de si mesmo. Não funciona. O voto distrital puro obriga todo parlamentar (vereadores, deputados estaduais e federais) a comparecer mensalmente a seu distrito eleitoral para prestar contas do que faz a seus eleitores, que poderão substituí-lo. O controle externo do Judiciário, para ser eficaz, deveria ser de iniciativa do chefe de Estado. Hoje, o senado tem poder para processar e julgar ministros do STF, e não o exerce devido ao número significativo de senadores com processos na Corte máxima. Este círculo vicioso de interesses mútuos impede a investigação de certos ministros do STF. 

         Caberia acrescentar ainda, no combate efetivo à corrupção em obras públicas, aprovar o bônus por desempenho (performance bond). Este instituto legal existe há um século nos EUA. É simples: ao lado da empresa executora de uma obra coloca-se uma seguradora independente cujos ganhos são tanto maiores quanto menores forem o custo e o tempo de duração da obra. Quase virou lei em 1994, mas interesses menores derrubaram o projeto, que teria sido um tiro mortal na corrupção endêmica que grassou (e grassa) no País.

       Foi a ausência destes dispositivos legais que levaram o Brasil a ser o que ele é hoje. Dá para acreditar que a culpa foi da reeleição?

 

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