Ficção e realidade marcam o longa ‘Noites de Alface’

22/06/2021 08:00
Por Danilo Casaletti, especial para o Estadão / Estadão

O antigo samba-canção Meu Rio de Janeiro, de Nelson Trigueiro e Oscar Belandi, diz que a Ilha de Paquetá é uma “joia rara em tua Guanabara”. Foi nesse lugar bucólico, com cerca de 5 mil habitantes, meio perdido no tempo, que o diretor e roteirista Zeca Ferreira – morador da ilha distante 17 km da cidade do Rio de Janeiro – encontrou o cenário ideal para rodar seu primeiro longa, Noites de Alface, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, dia 24.

Baseado no livro homônimo lançado pela jornalista e escritora paulistana Vanessa Barbara em 2013, o filme, rodado em 2018, conta a história de Otto (Everaldo Pontes), um homem idoso que sofre de uma terrível insônia. Para amenizar as noites em claro, sua mulher, Ada (Marieta Severo), passa a lhe oferecer chá de alface, uma receita que ela aprendeu com sua avó.

Sem muito traquejo social, Otto vê a vida por meio das janelas de casa. Ada, mais afeita ao convívio com os vizinhos, é quem traz o mundo externo para o marido. Quando ela lhe falta, Otto fica sem saber como lidar com o carteiro atrapalhado, a vizinha faladeira ou aguentar as enfadonhas reuniões da igreja.

Fã de romances policiais, o protagonista percebe que algo de estranho lhe ronda e, cercado de lembranças da mulher e atento ao comportamento dos que o cercam, ele tenta desvendar um crime. Dessa maneira, o filme, que se passa em tempo não linear, joga com realidade e ficção. Será que o delito de fato aconteceu ou é fruto da sua imaginação?

“A frase do livro que me pegou, que me levou a fazer esse projeto, foi ‘Ada se foi e Otto ficou ilhado’. Toda a ponte que esse homem tinha com o mundo exterior era feita por essa mulher. Sem ela, Otto precisa construir as histórias que Ada não lhe traz mais”, disse Ferreira, em coletiva online realizada na quinta-feira passada, dia 17.

No bate-papo virtual com os jornalistas, que contou, além do diretor e produtores, com a presença de Marieta e Pontes, o assunto chega, inevitavelmente, ao tempo presente. Embora o filme tenha sido rodado há 3 anos, o fato de um homem ver um mundo pela janela e a fuga que a arte proporciona a esse período de isolamento social geram inevitáveis reflexões, puxadas, sobretudo, por Marieta.

“Revi o filme e estou em estado de encantamento. Ele tem delicadeza, poesia e traz a necessidade da ficção na vida das pessoas. Sem a ficção, elas sucumbem. Ada é uma personagem-ponte. Cada vez que ela aparece, traz luz, cor. A vida desses personagens tem pequenos acontecimentos dentro daquela cidadezinha, mas, ao mesmo tempo, quando você entra na imaginação deles, há uma riqueza de fatos sem limites. Neste momento, este filme encontra um Brasil absolutamente contrário disso, que quer asfixiar a ficção, a imaginação e a cultura para enaltecer a violência, a arma, o autoritarismo e o obscurantismo. Este filme é uma chama de luz nessa escuridão. É um bonito respiro”, diz a atriz.

O paraibano Pontes se confessa um adicto da ficção. Aos 65 anos, ele diz que tenta ver pelo menos um filme por dia, seja em casa ou no cinema que costuma frequentar, mesmo que, por muitas vezes, sozinho, sem público, nesses tempos de afastamento entre as pessoas. No último filme que viu, Acqua Movie, de Lírio Ferreira, havia apenas ele em uma sala com 250 lugares.

Entretanto, para o ator, a solidão e o silêncio de seu personagem independem do momento atual. “A condição humana do Otto vai sempre falar sobre esses assuntos e sobre a velhice também. Eu me pareço com ele. Nos ensaios, percebi que estava nele. Sinto-me privilegiado por sempre ser chamado para fazer personagens que têm muito a ver comigo”, diz.

Com o orçamento enxuto, o diretor Zeca Ferreira diz que os ensaios eram feitos no set, enquanto a equipe acertava os detalhes. Ele, que já trabalhou com diretores como Nelson Pereira dos Santos, Hugo Carvana e Maria Augusta Ramos, conta que ouviu duas frases de Marieta e Pontes que o marcaram. “Marieta disse, em certo momento, que uma hora tudo se encaixa. Pontes, quando perguntei se ele já tinha achado o personagem, me disse que isso só acontece lá para o final das filmagens. O diretor precisa ter a delicadeza de não interferir nesse processo”, conta o cineasta.

No making off divulgado recentemente, há uma cena em que a figurinista apresenta a Marieta diferentes aventais para que ela faça a cena. Um deles é rejeitado com veemência pela atriz “acho muito fru fru”, diz.

“Como atriz, eu me agarro a tudo que pode me ajudar a encontrar um caminho que me leve ao personagem. O figurino, para mim, é fundamental. Eu não consigo ter o personagem antes de saber como ele pisa, que sapato usa. E, pelo que eu já intuí na construção dele, consigo saber, por exemplo, se quero esse ou aquele avental. Para quem está de fora, talvez não faça sentido, mas para mim tem uma importância absoluta”, explica Marieta.

Permeando a vida de Otto e Ada estão os coadjuvantes, como o farmacêutico Nico (João Pedro Zappa), os carteiros Anibal (Romeu Evaristo) e Aidan (Pedro Monteiro), a amiga Mayu (Limi Kin), a vizinha Teresa (Inês Peixoto), a mística Iolanda (Teuda Bara) e o delegado Bonfim (Eduardo Moreira) – os três últimos atores são do Grupo Galpão, importante companhia teatral sediada em Belo Horizonte. São eles que quebram o clima doméstico do casal, que alimentam a ficção na qual Otto mergulha.

“A realidade de Otto, sobretudo quando Ada não está mais com ele, vai sendo invadida por esses outros personagens. Por isso, eles são muito barulhentos, falam demais. São tipos, de fato. São lugares um pouco diferentes de atuação que trazem outro tom ao filme”, explica o diretor.

As locações em Paquetá – o nome do bairro não é citado no longa – também ajudam na construção de uma história que não deixa claro em que tempo ou local se passa. Nenhum personagem é visto com um aparelho celular nas mãos. E isso se torna um trunfo na trama na medida em que valida certos comportamentos e acontecimentos. O que seria do mundo de Otto se ele pudesse ver o mundo não só pela janela, mas também pela tela de um smartphone?

Ainda sobre a ilha, ao contrário de Noites de Alface, ela deve, em breve, encarar uma nova realidade. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, escolheu o bairro como a primeira região carioca a ter 100% de seus moradores vacinados contra a covid-19, em um estudo coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para monitorar a eficácia da vacina, o que aconteceu no fim de semana. Em setembro, o local deve sediar um evento-teste para um carnaval de uma esperada era pós-pandemia.

Previsto para estrear em salas de cinema do Rio, São Paulo, Porto Alegre, Salvador e Brasília, Noites de Alface tem produção da Afinal Filmes e coprodução do Canal Brasil, no qual, em breve, estará disponível em sua plataforma on demand.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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