Filme sobre Maria Bethânia é devoção a sua carreira
A chave do filme Maria – Ninguém Sabe Quem Sou está logo no começo, no texto introdutório da longa entrevista que a cantora Maria Bethânia concedeu em novembro de 2021 ao jornalista Carlos Jardim, que dirige e roteiriza o longa que chega aos cinemas no dia 1º de setembro.
“Maria Bethânia só faz o que quer”, lê a jornalista Mariana Gross – o filme é da Turbilhão de Ideias em parceria com a Globo Filmes, Globo News, onde Jardim é chefe de redação, Canal Brasil e Noticiarte Produções.
A sentença poderia ser também: Maria Bethânia só fala o que quer. E, nesse sentido, o documentário avança pouco em questões pessoais que a cantora faz questão de preservar. Não há, por exemplo, nenhuma confissão – e não que isso seja importante e nem seja o foco do filme seja novidadeiro – como a que Caetano Veloso fez em sua live de 80 anos, na qual disse que já viveu paixões (todas fugazes) por homens. Quem espera isso, pode se frustrar.
Ao lado de outras produções que já enfocaram a cantora – o poético Música é Perfume (2005), do diretor francês Georges Gachot, e do documental Fevereiros (2017), de Marcio Debellian, Maria – Ninguém Sabe Quem Sou, deixa Bethânia confortável em temas caros a ela: a relação com o palco, a religião, a amorosa relação com a mãe, Dona Canô, e sua forte ligação com o irmão Caetano Veloso e a identificação com o diretor Fauzi Arap. O show Opinião e a identificação com a obra de Chico Buarque também estão presentes.
Alguns desses papos soam repetidos para os fãs de Bethânia. Nara Leão, como a fada madrinha de sua carreira, é um deles – e Bethânia lê o poema que o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu quando Nara foi ameaçada de prisão pela ditadura militar. Cena parecida está na série O Canto Livre de Nara Leão (2022), produção do Globoplay.
Embora curioso, o motivo de Bethânia usar microfone com fio até hoje, é muito bem conhecido pelo séquito fiel que acompanha a carreira da cantora.
Confissões
Mas Jardim tem trunfos justamente na extensa entrevista que colheu com a cantora, e na qual o longa se concentra. Bethânia, por exemplo, narra com detalhes sua prisão pelos militares quando estes tomaram ciência do livro Maria Bethânia Guerreira Guerrilha, de autoria do jornalista Reynaldo Jardim. Lançado em 1968, ano do AI-5, ato que endureceu a ditadura militar, o livro foi recolhido das livrarias e Bethânia levada ao DOPS para ser interrogada por um milico cujo nome a história não fez questão de guardar.
A cantora também revela (ou não) o que há dentro de uma caixinha de ouro que ela carrega para dentro do palco em todas suas apresentações. O amuleto lhe foi dado por Mãe Menininha do Gantois. A ialorixá baiana, aliás, é um dos três pilares fundamentais no roteiro costurado por Jardim – ao lado de Dona Canô, mãe de Bethânia, e de Nossa Senhora, de quem Bethânia é devota.
Com olhar apurado para as imagens escondidas nos acervos das emissoras, sobretudo o da TV Globo, Jardim resgata para o filme raridades do quilate de Bethânia interpretando Beijo Partido, composição de Toninho Horta, no espetáculo A Hora da Estrela, de 1984. Bethânia jamais gravou essa canção.
Dos ensaios do show As Canções Que Você Fez Para Mim, de 1994, com a obra de Roberto e Erasmo Carlos, o filme mostra a pulsante performance da cantora para Eu Preciso de Você.
Toda essa sensibilidade para garimpar essas preciosidades se dá porque, além de jornalista, Jardim é um fã confesso de Maria Bethânia. Ele, inclusive, lança, junto com o filme, o livro Ninguém sabe quem sou eu (a Bethânia agora sabe!), da Máquina de Livros, no qual narra algumas das loucuras que já fez para se sentir mais perto de seu ídolo, como, por exemplo, pegar qualquer tipo de objeto que ela deixasse pelo caminho ou madrugar em filas para comprar ingresso para as apresentações da cantora.
Abelha rainha
Jardim traz para o longa Maria – Ninguém Sabe Quem Sou textos que falam sobre Bethânia escritos por Ferreira Gullar, Nelson Motta, Fauzi Arap, Caio Fernando Abreu e Reynaldo Jardim lidos pela atriz Fernanda Montenegro. Eles complementam a narrativa proposta pelo roteiro e são ilustrados por fotos raras de Bethânia – sempre no palco.
Um deles, o escrito pelo gaúcho Caio Fernando Abreu, aborda um assunto que Bethânia refuta em sua entrevista – ela diz achar bonito que os fãs a coloquem no altar, com gritos de “abelha”, “rainha”, entre outros, embora se recuse a deitar na cama do sucesso – mas que filmes como o de Jardim, Gachot e Debellian, juntamente com o desfile arrasador e vencedor que a Mangueira levou à Sapucaí em 2016 com Bethânia como enredo, corroboram.
“Foi muito in, ficou inteiramente out – até ultrapassar as divisões maniqueístas dos manipuladores da opinião pública para ocupar esse lugar muito especial só reservados aos mitos”, escreveu Abreu sobre a cantora.
Maria Bethânia, aos 76 anos de idade, 57 de carreira, alcançou, há alguns anos, esse lugar imagético, fora do comum, que Elis Regina obteve após sua morte e que Gal Costa, apesar de sua força dentro da música brasileira e aura de musa, ainda não chegou. Coisas de fã.