Forças armadas: a mudez necessária
Tudo como dantes no quartel de Abrantes? Ou será que não? As últimas mudanças nas três forças, Exército, Marinha e Aeronáutica, e no próprio comando do Ministério da Defesa dão o que pensar. O pedido de demissão de seus três comandantes em solidariedade ao ministro demitido é uma novidade positiva. Os generais Sérgio Etchegoyen e Santos Cruz, em entrevista ao Globo (31.3.2021), se posicionaram também na mesma direção contra o uso político das Forças Armadas. Para eles, elas são instituição de Estado, não de governo.
O vice-presidente gal. Hamilton Mourão, que Bolsonaro não pode demitir, também foi taxativo quanto a qualquer risco de ruptura institucional. Esta postura parece ter raízes mais profundas na oficialidade, envolvendo escalões menos graduados. Há uma recusa em se comportarem como milícia a serviço de governo, seja ele qual for. Dá para notar que a expressão “Meu exército” foi indevidamente usada por Bolsonaro. Não tem o apoio que pensa ter em seu ninho de origem do qual acabou expulso muitos anos atrás. Geisel se referiu a Bolsonaro como um mau militar.
A mídia em geral está comemorando esses posicionamentos que nos afastam do risco de golpe militar, com as sequelas usuais de sempre, mas é crítica da ordem do dia que tenta celebrar o 31 de Março. No primeiro ano de governo, Bolsonaro foi para as ruas apoiar manifestações que propunham o fechamento do Congresso e do STF. Naquele período, os militares ainda não deram demonstração inequívoca do desconforto que lhes causava tais atitudes.
Mas, aos poucos, foi crescendo dentro das Forças Armadas o receio de se envolverem em mais uma quartelada sob o comando destemperado de Bolsonaro. A própria ocupação de inúmeros cargos civis de governo por militares foi um tiro no pé. O desempenho do gal. Pazuello e sua tropa de choque instalada no ministério da Saúde está longe de ter sido um êxito. A essa altura, é evidente que a imagem dos militares vinha sofrendo sucessivos arranhões que poderiam desembocar em fratura exposta se dessem corda aos apelos autoritários de Bolsonaro.
Entretanto, a grande mídia não tem percebido que a raiz desse processo vem de longe, de 1889. Que lições podemos tirar desses episódios em que o estremecimento no relacionamento entre Bolsonaro e os militares fica claro? Elas são de duas ordens: as de curto prazo e, em especial, as de longo prazo.
As de curto prazo têm muito a ver com o desgaste sofrido pelas Forças Armadas nos dois últimos anos de governo. O sentimento de estarem sendo usadas para fins políticos se acentuou e acendeu a luz amarela. E agora, a luz vermelha. As atitudes do presidente de cortejar formaturas de PMs e mal esconder suas relações (e de filhos) com milicianos despertaram preocupação junto a militares cientes de sua real função. Estes, finalmente, parecem começar a se dar conta dos imensos riscos de sua participação política em que os prejuízos superam de longe os supostos resultados positivos tanto para as próprias Forças Armadas quanto para o País.
As razões de longo prazo têm mais substância, como é fácil comprovar.
A primeira delas foi trair uma espécie de mandamento de vida do patrono do Exército, o Duque de Caxias. Seu repúdio visceral ao golpismo chegaria a ponto de enfrentar o próprio pai, que estava entre os revoltosos de 1831 contra Dom Pedro I, não fosse a abdicação deste. A raiz desse processo perverso data a rigor de outro golpe, o de 15 de Novembro de 1889, que não tem merecido a devida atenção para se entender e superar essa rotineira intromissão na vida política do País por parte das Forças Armadas.
Entretanto, a percepção desse descaminho para a instituição militar não é nova. Já na década de 1920, e até 1940, houve um esforço de profissionalização com os Novos Turcos e a Missão Militar Francesa-MMF (1920 a 1940), cuja recomendação fundamental é que deveriam se comportar como o grande mudo.
Nessa linha, cabe relembrar o controvertido gal. Góis Monteiro, antes de 1930, em que ele reconhecia, como aluno brilhante da MMF, em letra de forma, o papel de grande mudo para as Forças Armadas. Ia além. Tinha a clara consciência de que essa era “a condição essencial de sua coesão e eficiência e até mesmo de sua existência como instituição. Sua verdadeira e única política é a preparação para a guerra”. E grifava estas quatro últimas palavras.
Na verdade, ele estava mais preocupado em agradar o oficial francês para tirar boa nota. Tanto isso é fato que, ainda na década de 1930, Góis Monteiro inventou a seguinte “teoria” e a colocou em prática: “Acabar com a política no Exército e implantar a política do Exército”. Essa triste visão aprofundava o descaminho histórico do Exército. Pior: ele deixou como herança a doutrina da segurança nacional, espinha dorsal do golpe de 1964. E foi assim que o Exército consolidou quase um século de sistemática intervenção na política.
Portanto, a longa ditadura militar de 1964 insistiu no erro da atuação política. É como chamar um advogado (militares) ao invés do dentista para cuidar de uma aguda dor de dente (política). A promessa de realizar eleições dois anos depois não foi cumprida. Os dois candidatos naturais à presidência, JK e Lacerda, que eram lideranças civis realizadoras, chegaram a apoiar o golpe para depois serem surpreendidos pela cassação de seus direitos políticos.
Tarda a hora de pôr um ponto final nesse papel espúrio da Forças Armadas como poder moderador. Um mea culpa dos militares é também uma peça fundamental nessa mudança de comportamento. Verem-se como instituição de Estado é um bom começo, o que não dispensa uma reforma política em profundidade, uma nova constituição, onde o País reorganize suas instâncias políticas. Não é mais aceitável conviver com os desmandos do STF, do próprio legislativo e do poder executivo sem dispor de mecanismos que ponham um fim rápido a tais desatinos. Hora de pensar seriamente em parlamentarismo, mas não o de ocasião como em 1961. A mudez militar é tradição mantida em países politicamente bem resolvidos. Hora de aderir ao bloco.