Fraternidade revolucionária

10/11/2018 09:07

Tempos de colar cacos de relacionamentos trincados. Em igrejas, pastores e padres se dedicam a falas de reconciliação. Em bares, amigos estremecidos retomam confraternizações. Familiares timidamente se telefonam. Irmãos lembram sua condição fraterna. As ruturas deixadas pelas eleições penosas e ruidosas começam a ser rejuntadas. É bom. Para que não vaze por tais frestas nem uma só gota de liberdade, dignidade, democracia e respeito. Fraternidade é pressuposto constitucional. Sob a proteção de Deus, os Constituintes instituíram o Brasil como Estado Democrático, com finalidade de nos fazer sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Que deve assegurar direitos sociais e individuais, liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça. Tal preâmbulo, com linhas do Navio Negreiro de Castro Alves e a letra do Hino Nacional, são das coisas que devíamos saber de cor. Para nortear nossas vidas de cidadãos.

Desde a Revolução Francesa, sabe-se que não haverá liberdade e igualdade, se não as unir a fraternidade. Remete a parentesco, irmandade, união. Afeto. É comum haja rusgas entre irmãos. Que sejam ilhas isoladas e breves, que retardam só por um pouco o correr das águas do grande rio do amor. Não convém arrastar mágoas vida afora, pessoas se cobrando pelo voto passado, a decisão difícil, porque para quase todo mundo não foi assim tão fácil fazer qualquer escolha nessa eleição. Houve opções do coração, é certo. Mas houve votos meramente cerebrais. E escolhas do fígado. Num universo assim, em que órgãos do corpo brigam entre si, difícil não transbordar um pouco de bile, não gotejar porção de sangue, não se queimarem neurônios. Com bile, sangue e neurônios cada um se armou para defender sua escolha. E isso desequilibra o organismo, e organismos em desequilíbrio provocam desarmonia entre as pessoas.

A hora é de apaziguamentos. Em democracias, ainda que imperfeitas como a nossa, quando as urnas falaram, não há muito mais a fazer. Torcer pelo melhor. Vigiar os ímpetos do pior. Manter a serenidade e o equilíbrio. Esquecer os discursos apocalípticos da campanha. Não seremos Alemanha dos anos 1920, como não precisaríamos ser Venezuela de agora. Podemos ser só esse Brasil mesmo, todo contraditório e enroscado, país meio adolescente ainda, hesitando aos tropeços em direção do aprendizado que o faz oscilar entre extremos, ainda buscando a figura do pai, a quem afrontará até se fazer adulto. Um país em busca de identidade e equilíbrio. 

Ficou clara a insatisfação com o que estava por aí. Uma democracia ultrajada, emporcalhada por incompetência e corrupção. Sinceros sonhos da esquerda aviltados por dirigentes levianos e criminosos. Isso fez muita gente ver a esquerda, toda ela, como sinônimo de ilicitude, o que é uma mentira. E a própria democracia como modelo de baderna e anarquia, outra inverdade. E pior ainda, a ditadura como mar de rosas, um absurdo. Mas dessa salada veio a opção pelo perfil autocrata. Tempos difíceis virão. Será necessário romper arroubos autoritários que possam surgir no horizonte. Reconstruir valores de esquerda digna e democracia sólida. Para isso, fraternidade é preciso. Nada de ficar apontando dedo, cuspir na cara. Nada de artistas se recusarem a trabalhar com os que deles divergem. A fraternidade, essa colcha de afetos, pode nos dar recomeços. A fraternidade é revolucionária. Só ela é mãe da igualdade e da liberdade.

denilsoncdearaujo.blogspot.com

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