Fraude, Trump e pé no Chão
O Brasil tem um longo caso de amor com a teoria da conspiração. Tem sempre alguém, pessoas ou países, nos boicotando ao invés de irmos fundo nessa questão. Ela nos faz lembrar de que quando você aponta o dedo para alguém tem sempre outros três voltados em sua direção. Ou seja, é sempre preferível se livrar do autoengano e verificar se não são forças internas de grupos de interesse que nos boicotam, como foi o caso do golpe republicano em1889.
Quando assisti à primeira aparição do Trump, após as eleições, acusando de fraude o processo de apuração de votos, eu logo me lembrei das mais de 20 mil mentiras dele computadas pelo “Washington Post”, o jornal que, em 1974, denunciou o Watergate, e causou da renúncia de Nixon. Seria mais uma mentira (e grave!) do Trump? E resolvi não me precipitar.
Passadas algumas semanas, o quadro foi ficando cada vez mais claro. Antes de mais nada, os EUA não têm um histórico de fraudes eleitorais. Têm, de fato, um sistema peculiar em que é possível um candidato ganhar no voto popular e perder no colégio eleitoral. Esse fenômeno não é nada tão incomum. Já aconteceu com o Bush filho e recentemente com a Hillary Clinton, que teve cerca de três milhões de votos a mais que Donald Trump e perdeu no colégio eleitoral. Ainda me lembro do ex-presidente Obama, triste, mas aceitando o resultado desfavorável ao Partido Democrata. E, na época, o Trump afirmando algo estapafúrdio na linha de que o pleito só seria lícito se ele vencesse(!).
Mas, fazendo a leitura visual das expressões fisionômicas de Trump, fiquei com a sensação de que ele estava mentindo. Ainda aguardei mais um tempo para ver o que iria acontecer com a legião de advogados mobilizados e as várias ações na justiça impetradas por ele, com o intuito de questionar a lisura dos resultados que lhe foram desfavoráveis. E ele acabou perdendo nas diversas instâncias legais a que recorrera. Teve mesmo condados em que a recontagem aumentou o número de votos dados a Biden.
E não é só isso. 80% dos americanos reconheceram Biden como o vencedor.
Mesmo no reduto republicano, 6 em cada 10 eleitores acataram a vitória do democrata. Diferentemente do que ocorrera com Trump e Hillary, Biden, além de vencer no colégio eleitoral, venceu também no voto popular com quase cinco milhões de votos a mais que Trump. Dado que acusações de fraude não são comuns nos EUA, as próprias lideranças republicanas se sentiram em maus lençóis quando a justiça começou a derrubar, uma a uma, as ações de Trump. E, por fim, Trump acabou tomando um puxão de orelha da própria família, pedindo que reconhecesse a vitória de Biden. Vergonha mundial para os EUA.
Na linha da teoria da conspiração, tão de nosso agrado, os globalistas, no fundo socialistas, fraudaram os resultados das urnas, para eleger Biden. O primeiro contra-argumento de peso, é por que os poderosíssimos globalistas não fizeram a mesma coisa, quatro anos atrás, para eleger Hillary Clinton já apoiam os “socialistas” democratas? Pergunta que deveriam se fazer.
A segunda questão se refere ao processo eleitoral americano que é de contagem manual dos votos, bem diferente do nosso, sempre acusado de ser manipulado por forças ocultas, como diria o finado presidente Jânio Quadros. Nos EUA, as recontagens feitas confirmaram Biden. E muitos apuradores se sentiram ofendidos porque teriam compactuando com uma fraude. Bem ao jeito americano, os condados mandaram a conta da recontagem para o Partido Republicano, que não gostou nada da ideia. (Que tal debitar Trump?)
No caso, os aderentes à teoria da conspiração (globalista) não se deram conta do desrespeito que estavam cometendo em relação ao povo americano. É como se fosse um imenso grupo de abobalhados que estava sendo enganado por meia dúzia de endinheirados para dar a vitória a Biden, e levar adiante seus intuitos contra a humanidade. Isto num país que já enfrentou empresas monopolistas, obrigando-as a se desmembrar em benefício da concorrência, sempre favorável aos consumidores. A teoria da conspiração pode, sem dúvida, se aplicar a casos como o que levou à proclamação da (dita) república. Mas não para explicar a derrota de Trump. O bom senso comezinho é suficiente.
Cabe ainda um esclarecimento sobre o que é globalismo e globalização. Globalização é eminentemente um conceito econômico, oriundo da teoria das vantagens comparativas do famoso economista inglês David Ricardo. Muito resumidamente, significa que devo me especializar em produtos em que outras nações não conseguem produzir a custos menores que os meus. E comprar de outras, itens em que elas são mais eficientes em termos de custos. Importante ressaltar que um país pode criar sua vantagem comparativa investindo para reduzir seus custos e produzir internamente, e até exportar, um dado produto.
A briga se dá em relação ao globalismo, um conceito político, também chamado de globalização política. Como nos informa Emanuel Steffen, “o globalismo é uma política internacionalista, implantada por burocratas (…). O objetivo do globalismo é determinar, dirigir e controlar todas as relações entre os cidadãos de vários continentes por meio de intervenções e decretos autoritá-rios”. Os burocratas de Bruxelas chegaram ao requinte de estabelecer o grau de curvatura a que deveria obedecer um pepino produzido na União Europeia! O Gosplan, órgão de planejamento central da ex-URSS, aplaudiria. Trata-se de uma mentalidade socialista-coletivista contra a qual a Inglaterra se rebelou.
No meu terceiro livro, a ser lançado em abril de 2021, “História da Autoestima Nacional – Uma reflexão (heterodoxa) sobre monarquia, república e interesse público”, em que abordo a construção, a desconstrução e a reconstrução da dita cuja, faço uma defesa fundamentada da reafirmação de nossa estremecida identidade nacional. Coerentemente, a luta não deve ser contra a globalização econômica, mas sim contra o globalismo político pelo risco de ter que nos submeter a poderes supranacionais. E até ditatoriais.