Gastão Reis: A CPI necessária, e sempre escamoteada

31/10/2021 12:52
Por Gastão Reis

Imagine, caro(a) leitor(a), um deputado federal recém-eleito (talvez do NOVO,  aquele partido que vota contra o Fundo Eleitoral), em seu primeiro discurso na Câmara Federal. E que fizesse a seguinte proposta a seus pares: “Vamos instalar uma ou mais CPIs”, diria ele, “que nos livre do curto prazo e nos permita apurar as causas de longo prazo que levou o Congresso Nacional e os partidos políticos a só merecerem a confiança de 4 e 3%, respectivamente, da população, conforme revelado pela pesquisa do Datafolha, de 25.09.2021, que investigou a referida confiança popular nos poderes e nas instituições”.

É bem possível que a proposta, para infelicidade geral da Nação, fosse rejeitada, não obstante sua importância. Os próprios políticos e partidos se ressentem de seu desprestígio junto à população. Quando tomamos um cafezi-nho com conhecidos e amigos, o veredito é sempre o mesmo: “Só nos procuram a cada quatro (ou dois) anos às vésperas das eleições. E depois somem.”

Afinal, o nível de confiança de apenas um entre trinta eleitores diante de quem deveria nos representar escancara a crise de representatividade de décadas.  Uma CPI com este objetivo mudaria a visão da população sobre seus representantes no congresso e dos partidos. Seria um passo gigantesco para nos livrarmos do foco no curto prazo indo à raiz dos problemas para pôr fim a essa situação vexatória e inaceitável.

O fio condutor dessa CPI deveria averiguar, de cara, como se organizam os países cujas instituições gozam do respeito da população. A primeira conclusão da CPI é que eles não adotam o sistema eleitoral proporcional. (No Brasil, com a síndrome de votar em A e eleger B!). De um modo geral, reina o voto distrital puro ou misto. A segunda constatação é que eles têm mecanismos de vigilância dos políticos pelos eleitores entre as eleições, o que desmente a visão de que as eleições são o grande momento da democracia,e sim, o que se passa entre elas.

Eu e minha mulher nos lembramos bem, no período em que estudamos na Universidade da Pensilvânia (1977-1980), de receber regularmente a prestação de contas por escrito do vereador e dos deputados estadual e federal da área em que morávamos. Nunca fomos, mas poderíamos ter ido (que pena!) às reuniões mensais em que esses representantes do povo se expunham às cobranças de seus eleitores. Nada disso aconteceu ontem, ou hoje, no Patropi.

Outra CPI poderia investigar as razões de fundo de haver tanta corrupção nas campanhas eleitorais. Aqui também não seria muito difícil entender o que se passa. Quem já buscou se informar sobre o custo do voto distrital puro deve ter se surpreendido com o fato de que onde se gasta 100 poderia se gastar 20. Ou seja, a campanha eleitoral no sistema distrital puro é 1/5 do que custa no sistema proporcional.   

Tomemos o exemplo da campanha para vereador. O município é dividido por bairros em distritos eleitorais onde cada partido apresentaria um único candidato. Em vez de ter que optar entre mais de 300 desconhecidos, o eleitor escolheria entre poucos candidatos. Estes teriam que residir no bairro (ou conjunto de bairros vizinhos que formam um distrito), onde moram os eleitores, que já os conheceriam de antemão. O fato de o eleitor saber quem é quem lhe dá condições de votar bem informado. Processo semelhante ocorreria na eleição de deputados estaduais e federais.

O fato de uma campanha no sistema proporcional custar até cinco vezes mais abre as portas para muita corrupção. No caso do vereador, no sistema de voto distrital puro, ele poderia fazer sua campanha em seu bairro (ou distrito) quase que a pé. A outra corrupção, aquela atual e mais séria, de políticos que não nos representam, estaria neutralizada pelo fato de, uma vez eleito, o vereador ter que prestar contas mensais de seu desempenho, podendo ter seu mandato revogado pelos eleitores (recall) e substituído por outro representante.

A terceira CPI poderia investigar as causas do aumento brutal da desigualdade, que não para de crescer no Brasil. E aqui a conclusão pode ser reforçada por um estudo recente sobre a educação brasileira. A característica detectada pelos pesquisadores Gabriela M. Moriconi, Nelson G. Gimenes e Luciana F. Leme mostra nossa defasagem em relação aos países desenvolvidos. “Aqui”,dizem eles, “é muito mais comum que os docentes sejam contratados em tempo parcial e atuem em mais de uma escola”. “Nos países mais avançados”, continuam eles, “contratam prioritariamente professores, em tempo integral, para que atuem numa única escola”. O fato evidencia o permanente e secular descaso das autoridades em relação à educação pública básica de qualidade em tempo integral, cujo rendimento é significativamente maior.    

Estas três CPIs e suas conclusões, se postas em prática, teriam o mérito de destravar o País tanto do ponto de vista da correção das distorções do nosso sistema político-eleitoral bem como de preparar o país em termos de capital humano para a sociedade do conhecimento de que nos falava Peter Drucker. Também nos livrariam da miopia do curto prazo, de questiúnculas que jamais resolverão nossos problemas estruturais.

Por fim, cabe uma advertência sobre previsões fáceis de serem feitas com acerto. Prever é sempre uma atividade de alto risco, exceto quando diante de problemas estruturais que, não-resolvidos, comprometem irremediavelmente o futuro.  E isso vale tanto para indivíduos quanto para coletividades. Aluno relapso terá mau desempenho. Nações que não se planejam para o futuro, e continuam a manter práticas que afrontam o bem comum, estão condenadas a marcar passo.

Qualquer dúvida a esse respeito, basta consultar o livro, bem fundamentado em dados, “Ficando para trás – Explicando a crescente distância entre América Latina e os Estados Unidos”, editado por Francis Fukuyama, da Editora Rocco. A boa notícia é que conhecemos o caminho. Basta aderir ao bloco do bem comum.

(*) Autor do artigo “A Jabuticaba (Amarga) da Indústria”, publicado em O Estado de SP, em 05/09/2015. Basta digitar este título no Google que vem no ato.

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