Governo impede festival de jazz ‘antifascista’ de captar recursos via Lei Rouanet

13/07/2021 12:03
Por Redação, O Estado de S.Paulo / Estadão

No dia 20 de junho de 2020, os organizadores do Festival de Jazz do Capão, na Chapada Diamantina, na Bahia, fizeram um post no Facebook e Instagram em que diziam: “Não podemos aceitar o fascismo, o racismo e nenhuma forma de opressão e preconceito”. A frase acompanhava uma imagem de um microfone com os dizeres: “Festival Antifascista e Pela Democracia”.

O Festival de Jazz do Capão, que já está em sua nona edição, foi surpreendido por um parecer técnico desfavorável da Fundação Nacional das Artes (Funarte) para que ele pudesse captar recursos por meio de leis de incentivo fiscal. Esta é a primeira vez que o Festival de Jazz no Capão não poderá usar a Lei Rouanet.

O documento foi assinado no dia 25 de junho, pelo parecerista Ronaldo D. Gomes e por Marcelo Nery Costa, diretor executivo da Funarte, e os organizadores do festival vieram a público nesta segunda-feira, 12, para comentar o assunto e publicaram trechos do parecer em que citam a tal postagem de 2020, em que o evento se posicionava como antifascista.

Nery foi nomeado para este cargo na Funarte em maio. Ele atuava na Autoridade de Governança do Legado Olímpico, dentro do Ministério do Esporte, onde foi assessor de diretor executivo, diretor executivo e presidente substituto do órgão.

Política e religião

O parecer, que cita Deus em diversos trechos, chama a atenção para o “desvio do objeto, risco à malversação do recurso público incentivado com propositura de indevido uso do mesmo” e ao longo desta segunda, nas redes sociais, membros da Secretaria Especial da Cultura reafirmam o seu caráter político para justificar a reprovação, este ano, do projeto.

O parecer começa com uma citação atribuída a Johann Sebastian Bach: “O objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma”. Mais adiante, quando vai discutir a “aplicabilidade da lei federal de incentivo à cultura em objeto artístico cultural”, lemos, logo na abertura: “Por inspiração no canto gregoriano, a Música pode ser vista como uma Arte Divina, onde as vozes em união se direcionam à Deus.” Após um trecho de um canto, o texto segue: “A Arte é tão singular que pode ser associada ao Criador.”

André Porciuncula, Secretário Nacional de Incentivo e Fomento à Cultura, também conhecido como “Capitão Cultura” (ele é capitão da PM), escreveu no Twitter que a “cultura não ficará mais refém de palanque político/partidário, ela será devolvida ao homem comum”.

Ao que o ex-ator e atual secretário do pasta Mário Frias respondeu: “Enquanto eu for Secretário Especial da Cultura ela será resgatada desse sequestro político/ideológico!”

Frias também disse que “a lei é bastante clara” e que “apenas eventos culturais serão financiados com a verba federal da Rouanet.

No dia 20 de outubro de 2020, uma portaria publicada no Diário Oficial e assinada por André Porciuncula homologava “projetos culturais que, após terem atendido aos requisitos de admissibilidade estabelecidos pela Lei 8.313/91, Decreto 5.761/06 e a Instrução Normativa vigente, passam a fase de obtenção de doações e patrocínios”. Entre eles estava o Festival de Jazz do Capão. Ele foi autorizado a captar R$ 147.290,00 entre os dias 21 de outubro e 31 de dezembro. O festival, no entanto, não foi realizado no ano passado.

O Festival de Jazz do Capão se divide em apresentações ao público em dois dias de evento, além de workshops com os músicos convidados.

“Continuaremos empenhados em manter o Festival de Jazz do Capão vivo, convictos de estar contribuindo para o desenvolvimento de uma sociedade inclusiva, plural e democrática”, escreveram os organizadores no Facebook.

Mário Frias é o segundo secretário especial da Cultura desde a demissão de Roberto Alvim, que fez apologia ao nazismo e criou o Prêmio Nacional das Artes, que depois foi cancelado. Apoiado por Jair Bolsonaro, Alvim chegou a dizer que a arte nacional dos próximos 10 anos seria heroica e nacional. “A cultura é a base da pátria, e quando a cultura adoece, o povo adoece junto. É por isso que queremos uma Cultura dinâmica, mas enraizada na grandeza dos nossos mitos fundantes. A pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus amparam nossas ações na criação de políticas públicas. As virtudes da fé serão alçadas ao território sagrado das obras de arte”, disse à época.

Quando a Prefeitura de Itajaí cancelou um evento LGBT (Roda Bixa) em maio, Mário Frias comemorou no Twitter e disse que a decisão local estava evitando que o Governo tomasse medidas jurídicas. O evento havia sido contemplado com a Lei Aldir Blanc. Em outra ocasião, Frias e Porciuncula participaram da live Cultura e Arte Cristã, que buscava explicar como usar as leis de incentivo à cultura. Enquanto isso, produtores e especialistas do meio cultural alertam para a paralisia do setor e falta de canais de comunicação para a aprovação de novos projetos que poderiam ativar cadeias de emprego.

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