Grupo Galpão transforma celular em palco para ‘Como os Ciganos Fazem as Malas’
Olhar uma foto de viagem e lembrar de um passeio incrível se tornou um evento comum na pandemia. Até episódios de voo atrasado ou sumiço de bagagem já têm lugar especial no coração de quem não viaja há mais de um ano. Esse clima saudoso de aeroporto está em Como os Ciganos Fazem as Malas, nova obra do Grupo Galpão, que estreia neste sábado (5), toda apresentada no aplicativo de mensagens Telegram.
Como uma espécie de crônica, escrita por Newton Moreno, a história traz a passagem de um escritor por um aeroporto. Enquanto busca uma boa história, o personagem descreve detalhes do ambiente que ganharam nova dimensão no mundo de hoje, sem embarque e check-in, conta o dramaturgo. “Nessa situação de claustro, viajar é um exercício de muita imaginação. Estamos sem estrada.”
O relato do viajante interpretado por Paulo André traz versos em áudio, imagens dos passageiros no voo e um pouco de humor com o uso de GIFs, conta o ator. “Consigo realizar enquetes e acompanhar a participação do público”. Também estão no elenco Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Simone Ordones, Lara Madonna Volguer Estrela, Lydia Del Picchia, Luiz Rocha e Shima.
A descoberta de tantos recursos narrativos no aplicativo veio após muita tentativa e erro, descreve a diretora Yara de Novaes. “Tentamos os stories do Instagram e percebemos que o texto tinha uma sinceridade que não funcionava nos vídeos curtos”, justifica.
O WhatsApp também foi cogitado, principalmente após André e Yara assistirem a Tudo que Coube numa VHS, do Grupo Magiluth. Apresentado como um “experimento sensorial de confinamento”, a montagem do grupo pernambucano unia o aplicativo de mensagem mais popular do Brasil com interações no Instagram e Spotify. “O Telegram se mostrou mais completo”, conta a diretora. “Por exemplo, é possível trabalhar com texto, áudio, vídeo e trilha sonora, tudo junto.”
De fato, a música criada por Barulhista encontra um lugar especial no aplicativo, uma vez que o Telegram permite rolagem da tela sem interromper a execução do áudio. O que não acontece com o WhatsApp. “O trabalho ganha camadas de som. Deixa de ser apenas voz ou som ambiente para criar situações de drama e humor”, explica André.
Além da parte estética, as ferramentas de automação do Telegram ajudam nos bastidores. O envio de mensagens em tempo real e o envio programado são as novas ferramentas do ator. A voz de André tem um papel de guia na experiência, mas quem dá o ritmo da obra é o fluxo de texto, foto e vídeo, surgindo a todo instante na tela. Até os erros são bem-vindos.
“De vez em quando, digito algo incorreto ou fora de ordem só pra lembrar o público que não sou um robô”, brinca o ator. Para a diretora, um ambiente tão livre quanto o palco. “É um lugar interessante para a performance porque o Paulo André tem a chance de fazer o que quiser, agir nos erros, nas edições e no modo de interagir”, comenta Yara. E ao fim de cada transmissão, todas as mensagens enviadas são apagadas. “A pessoa só vai ter a lembrança”, acrescenta André. “Como acontece no teatro.”
A interação com o público também recebeu tratamento especial. O projeto oferece o modo maratona, ao vivo, com duração de 1h30, e a jornada diluída, ao longo de oito horas. “Na segunda opção, a trama é apresentada com mensagens em ritmo descontinuado, para o público acompanhar quando quiser, até o fim da viagem,” explica Yara. “Durante os ensaios, algumas pessoas preferiram a maratona, e outras contam que ficaram na expectativa pela chegada de cada mensagem.”
Público digital
O projeto é mais um passo na frente criativa e digital que o Galpão vem desenvolvendo desde os primeiros meses da pandemia. No filme documental Éramos em Bando, lançado em 2020, o grupo aparecia lado a lado nas telinhas de videoconferência para compartilhar os primeiros impactos – e os absurdos – da quarentena na vida da companhia e de seus artistas.
Naquele momento, foi o caminho mais rápido e simples para acessar o público. Entre as dores relatadas no documentário, o grupo vivia o cancelamento da estreia do espetáculo Quer Ver Escuta, no Festival de Curitiba, e muitas dúvidas sobre o futuro. Mais tarde foi a vez de Histórias do Confinamento. Uma proposta que colheu a experiência do público durante a pandemia. Os relatos mais interessantes foram escolhidos e narrados pelo elenco do Galpão.
Ao reconhecer tantas transformações no modo de trabalhar, o autor de Como os Ciganos Fazem as Malas reflete que o pensamento nômade da obra pode alimentar o próprio ofício. “O teatro precisa estar conectado e traduzir esse mundo confuso”, acredita Moreno. “Estão surgindo coisas legais, mas não vão roubar o encontro que virá no futuro.” André concorda que a parceria do teatro com o digital não vai se desfazer tão cedo, mesmo depois da pandemia. “Temos preocupação de que o trabalho no digital não seja um lugar provisório ou precário. Estamos impedidos de fazer nossa arte viva, presencial, mas se mantém o desejo de nos dirigirmos ao outro.”
O projeto Dramaturgias – Cinco Passagens Para Agora se estende até dezembro, com participação do diretor Marcio Abreu e dos autores Pedro Brício e Silva Gomez.