Guerra na Ucrânia expõe erros estratégicos do passado e leva Europa a mudar foco para armas

23/fev 11:00
Por Jéssica Petrovna / Estadão

Segura da proteção dos Estados Unidos e confiante nos tempos de paz, a Europa reduziu praticamente pela metade os gastos em defesa nas três décadas que se seguiram a Guerra Fria. Até que Vladimir Putin rompeu com a aparente normalidade ao invadir a Ucrânia. O conflito, que completa dois anos neste sábado, 24, expõe as fragilidades do continente no momento em que o apoio dos EUA é cada vez mais incerto. E levou a mudança de foco: do desenvolvimento verde para as armas.

Ainda que mais da metade do continente esteja sob o manto da Otan, paira o temor de que Putin poderia testar a aliança – alarme que soou repetidamente nas últimas semanas. A Alemanha alerta que a Rússia poderia atacar um país-membro entre cinco e oito anos, enquanto a Dinamarca afirma que Moscou poderia arriscar uma guerra mais ampla entre três a cinco anos.

A Suécia, que já abandonou a neutralidade histórica, mas ainda espera o aval da Hungria para entrar na Otan, soou ainda mais alarmada. O ministro da Defesa, Carl-Oskar Bohlin, disse que “poderia haver uma guerra” no país e o comandante militar Micael Byden reforçou que os suecos precisam “se preparar mentalmente” para a possibilidade de conflito.

A apreensão é alimentada por declarações que vêm do outro lado do Atlântico. O ex-presidente Donald Trump, que tenta voltar à Casa Branca, já sugeriu que poderia ignorar o artigo 5 do tratado da Otan (“o ataque armado contra um será considerado ataque contra todos”). Mais recentemente, ele foi além e disse que encorajaria a Rússia a fazer “o que quisesse” com países em dívida, uma provável referência ao compromisso de investir 2% do PIB em defesa.

A Europa reduziu drasticamente os investimentos militares no pós-Guerra Fria. Em 1989, ano em que caiu o Muro de Berlim, os gastos em defesa da Europa Central e Ocidental somaram US$ 348 bilhões, segundo dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri da sigla em inglês). Em 1993, já sem a União Soviética, os valores não chegaram a US$ 292 bilhões.

“Havia uma suposição geral de que era possível negociar com a Rússia, mas todos os acordos (do passado e do presente) foram ignorados na primeira oportunidade”, afirma Jan Kallberg, pesquisador do programa de Segurança e Defesa Transatlântica do Centro de Análises Políticas Europeias (Cepa, da sigla em inglês).

“Isso cria uma incerteza significativa. Você vê, por exemplo, a Finlândia e a Suécia se juntando a Otan. E agora todo mundo diz que o potencial de uma guerra na Europa é uma realidade”, acrescenta.

Putin avançou o sinal pela primeira vez em 2008 ao invadir a Georgia, ex-República Soviética, assim como a Ucrânia. Mais tarde, em 2014, tomou a Crimeia e foi a partir daí que os europeus passaram a se comprometer em gastar mais com a própria segurança. A questão é a velocidade.

“A Rússia está desafiando a lógica. O que aconteceu em 2022 parecia impossível. Precisamos estar preparados para qualquer cenário”, disse em o ministro da Defesa da Polônia, Wladyslaw Kosiniak-Kamysz, em entrevista recente à imprensa local.

O país, que já esteve na zona de influência soviética, praticamente dobrou a meta e, em 2023, investiu 3,9% do PIB em defesa. Em termos proporcionais, supera os Estados Unidos, que gastaram 3,5% dos seus recursos na área.

Na esteira da declaração de Trump, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, informou este mês que 18 dos 31 países da aliança chegaram ao piso dos 2% do PIB. Mas reconheceu que “alguns aliados ainda tem um caminho a percorrer.

De fato, os investimentos tem aumentado. O “Balanço Militar” do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos publicado este mês mostrou que os gastos com defesa na Europa em 2023 chegaram a US$388 bilhões. Para comparação, no entanto, a Ásia gastou US$ 510 bilhões, sendo boa parte da China. Nos EUA, a cifra passa dos US$ 900 bilhões.

“A Europa está preocupada que possa, de repente, ficar por conta própria e não está preparada para isso. Porque a Europa depende dos EUA para segurança basicamente desde 1942”, lembrou o historiador Niall Ferguson, em entrevista ao Estadão no fim de janeiro. “Não vejo como a Europa pode fazer sem os Estados Unidos pelo menos pelos próximos dez anos. E nesse período terá que gastar muito mais em segurança do que tem gastado”, acrescentou.

Do verde para as armas

Como parte do esforço para aumentar as capacidades de segurança, a presidente da Comissão Europeia Ursula Von Der Leyen prometeu lançar daqui a duas semanas uma estratégia industrial de defesa. O plano inclui a abertura de um escritório de inovação na Ucrânia.

“Precisamos gastar mais, sem dúvida. Estamos no caminho, mas sabemos que não é suficiente e que esses gastos precisam ser sustentados”, disse na Conferência de Segurança de Munique. “Sou uma transatlântica convicta e, ao mesmo tempo, temos de construir uma Europa forte e isso anda de mãos dadas”, acrescentou. Em outras palavras, não dá para depender apenas da aliança com os EUA.

A alemã está à frente da União Europeia desde 2019 – quando protestos de jovens inspirados pela ativista Greta Thunberg, eleita a pessoa daquele ano pela revista Time, impulsionaram o debate sobre as mudanças climáticas. Agora, no entanto, o mundo mudou. E as prioridades europeias também.

Negociadores do bloco europeu reduziram o plano de inovação de 10 bilhões de euros, propostos no meio do ano passado, para 1,5 bilhão no começo de 2024. E condicionaram os recursos a projetos de defesa e não tecnologia verde, como previa inicialmente a Plataforma de Tecnologias Estratégicas para Europa (STEP, da sigla em inglês). Os valores ainda estão em negociação, mas a discussão evidencia a mudança de foco do bloco.

Em paralelo, o Banco Europeu de Investimento, que descreve a transição verde como prioridade e destina mais da metade dos recursos para ações climáticas e desenvolvimento sustentável, prometeu 8 bilhões de euros para impulsionar a segurança na Europa. Isso apesar de projetos militares e de armamento estarem na lista de investimentos banidos do banco, o que tem sido motivo de discussões dentro do bloco.

“Uma mentalidade quase da Guerra Fria está voltando. E há na Europa uma geração de políticos muito jovens, que nunca pensou sobre a ameaça de armas nucleares porque isso não era discutido há 30 anos. Todos achavam que era algo muito distante”, afirma Jan Kallberg. “A classe política estava muito concentrada na questão ambiental, que era uma discussão muito grande na Europa. E agora precisa discutir cenários terríveis em que não há opção boa”, acrescenta.

Dificuldades do apoio à Ucrânia

Bruxelas já superou Washington em ajuda a Kiev, mas a distância entre o prometido e o entregue ainda é grande. A União Europeia se comprometeu com 144 bilhões de euros e alocou metade, 77 bilhões, segundo o monitor do Kiel Institute for the World Economy, com sede na Alemanha.

Acontece que a redução do investimento nas últimas décadas enfraqueceu a indústria e, agora, os europeus enfrentam dificuldades para produzir e fornecer ajuda militar na velocidade que a Ucrânia – arrastada para uma guerra de intensa artilharia – precisa.

Um exemplo disso são as munições: a promessa era de 1 milhão no prazo de um ano que se encerra em março mas, até novembro de 2023, só 300 mil haviam sido entregues. “Não vamos atingir 1 milhão, precisamos assumir isso”, admitiu na época o ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius – o mesmo que alertou para o risco de a Rússia atacar a Otan.

“Houve uma enorme redução das indústrias de defesa e, agora, o resultado é que a Europa está em uma posição ruim em termos de capacidade de produção e enfrenta desafios para atender os requisitos da Ucrânia”, afirma o capitão aposentado da inteligência naval americana e pesquisador do Centro de Análise de Política Europeia, Steven Horrell.

Isso leva ao questionamento: e se realmente houvesse um conflito Otan versus Rússia? As bases industriais de defesa não estão preparadas para esses desafios em larga escala.

O exercício da Otan

Na tentativa de corrigir os erros estratégicos do passado e se preparar para esses desafios em larga escala, a Otan lançou o maior exercício militar desde o fim da Guerra Fria. Com 90 mil soldados mobilizados, o objetivo é testar como funcionariam na prática os novos planos de segurança da aliança militar.

O treinamento vai até maio com a participação dos 31 países da Otan mais a Suécia. E a justificativa é a ameaça da Rússia. “Será uma demonstração clara de nossa unidade, força e determinação em nos protegermos mutuamente”, disse o general norte-americano Christopher Cavoli, chefe do Comando da Otan para a Europa quando o exercício foi anunciado.

Segundo analistas, o treinamento é a continuidade dos compromissos estabelecidos pela Otan nas últimas cúpulas, realizadas já no contexto de guerra – a de Madri, em 2022, e a de Vilna, em 2023.

“A grande questão não é nem mesmo o número de 90 mil soldados, mas o exercício dos planos. É a forma de garantir que não há erros de cálculo, que não ficou nada para trás. É levar o plano para prática e corrigir os erros”, afirma Steven Horrell.

O alerta que vem do Báltico

Outra evidência da tensão na Europa veio dos países Bálticos, que estão entre os principais apoiadores da Ucrânia (na proporção do PIB) e tem sido há anos os mais vocais ao alertar para ameaça da Rússia, mesmo antes da guerra. Estônia, Letônia e Lituânia, concordaram em construir uma linha de defesa conjunta para proteger o flanco oriental da Otan. A ideia é dissuadir e, se preciso, se defender de potenciais ataques.

O monitor do Kiel Institute for the World Economy mostra que, desde o início da guerra, a Estônia destinou o equivalente a 3,5% do PIB para Kiev. Considerando o tamanho da sua economia, o país é aparece como o maior apoiador. Lituânia e Letônia também estão entre os cinco maiores doadores em termos proporcionais com 1,5% e 1,2% do PIB, respectivamente.

Além do dinheiro, os Bálticos também fornecem apoio político no momento em que a Ucrânia enfrenta a fadiga da guerra. Talvez por isso, a região tenha sido escolhida pelo presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, para a primeira viagem internacional do ano. “Putin não vai parar. Ele quer ocupar a todos nós”, disse em Vilna, na Lituânia, ao ecoar os temores locais.

As repúblicas do Báltico foram as primeiras a romper com o Partido Comunista e deixar a antiga União Soviética ainda antes do bloco se desintegrar. Uma década depois, Lituânia, Estônia e Letônia deram entrada na Otan e na União Europeia. O movimento foi considerado uma traição por Vladimir Putin, que investe em campanhas de intimidação.

“Os Bálticos, assim como a Polônia, têm sido a exceção ao alertar, mesmo antes de 2014 (quando Crimeia foi anexada) que a Rússia era uma ameaça enquanto havia ainda esse otimismo com o fim da Guerra Fria, a queda do Muro de Berlim, a dissolução da União Soviética”, aponta Steven Horrell. “Eles tiveram uma experiência direta e conhecem as ambições imperialistas da Rússia”, acrescentou.

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