Histórias de dar luz e coragem
Minha avó morou em humilde casa com chão de terra batida. Mas toda madrugada, como uma rainha, escovava calmamente os longos cabelos para o coque diário, entre melodiosos assobios de louvor. Só após exercitar os lábios de flauta, abria o dia com panelas no fogo e panos de renda nas mesas. Dona Endelice Frutuoso era muito frutífera.
Meu avô, lavrador sem-terra, homem de tantos labores humildes, carecia dentes. Mas que radiante o seu sorriso que, se cálcio não tinha, trazia o coração em luzes, enquanto preparava na terra molhada fruteiras que encheriam de sabores a estação das nossas saudades. Seu Alfredo Cardoso era cúmplice da natureza.
Meu pai, num antigo Natal, não teve dinheiro para presentes. Mas nos reuniu na cozinha da casa apagada, na volta da igreja, e de repente tirou do bolso as varetas que pôs, uma na mão de cada filho. Quando as acendeu, fez-se a magia. O escuro foi cortado com os chuveiros de faíscas incandescentes saltando de nossas mãos, encantando nossos olhos e fixando na memória o pai que fazia chover estrelas: Dinizar de Araújo.
Minha mãe, nas frequentes noites de blecaute dos anos 1960, espantava receios da prole na escadinha da boca da rua, onde nos mostrava constelações e ensinava lindos hinos da igreja. No breu, a penca de filhos fazia-se coral de crianças: “Quão Grande és Tu”. Havia luz. Anjos, que vinham espiar. Bem antes de certo poeta, Nilma Cardoso me ensinou: “Faz escuro, mas eu canto”.
O Coral chegou para o concerto. Alguma confusão de agenda e equívoco de convites, deu em plateia deserta. Apenas eu e minha linda namorada de então, não mais. Coristas e o maestro iam desistir, mas logo insurgiu-se uma voz de sabedoria profunda. “Cá estamos ensaiados, uniformizados, e” disse, apontando para nós, “há plateia. Vai ter concerto”. E concerto houve, lindo, divino, para duas pessoas. A lição do corista Wolney Aguiar ecoa até hoje em minha vida.
Meu amigo comprara um pão doce que aguava nossa fome juvenil de garotos sem dinheiro. Quando o desembrulhamos, maltrapilhos meninos espiaram por cima do muro, com olhos sequiosos. Meu amigo hesitou um segundo, apenas. Como um enviado de Deus que dirige uma ceia, logo estava partindo o pão em pequenos nacos que dividiu igualmente, nos irmanando aos garotos da rua. Daniel Eiras não sabia, mas antes de ir pro seminário já era pastor.
Arredio menino com medo do mundo, recém-saído da escola pequena para o gigantesco CENIP, hoje D. Pedro, eu estava sentado num canto do pátio. Solitário no meio da inclemente multidão do recreio. Como um anjo flutuando numa nuvem, veio aquela popular e linda princesa, com olhos de céu e coração de lã, e sentou-se ao meu lado para mudar minha vida. “Posso ser sua amiga?”, disse a sua alma grande. Heloísa Dimárzio, amiga primeira, ensinando generosidades.
Em Itacoatiara, à beira do rio Amazonas, numa noite triste em que o esplêndido céu de habituais estrelas se escondera, fez-se um negror incomum manchando águas, nuvens e selva. De repente, surge aquele imenso navio-gaiola, iluminado de elétricas orbes douradas como um carrossel natalino. Dele vinha música. Passou, rasgando o breu como uma agulha de ouro mandada por Deus para lembrar: a aurora virá. Até hoje esse felliniano navio navega em meu peito.
Nesses tempos difíceis de um país à beira do abismo, te ofereço, leitor, essa memória de algumas vivências que sempre me dão força e coragem. Que te abençoem.
denilsoncdearaujo.blogspot.com