Incoerência ou cinismo
A incoerência da direita não é novidade. O ineditismo está na desfaçatez contida em seu discurso. O que antes era crime de lesa-pátria agora faz parte da conjuntura, o que levou milhões às ruas ontem, hoje os faz permanecer no sofá e declarações que causavam histeria agora são recebidas com naturalidade. Até a crise, que era política e doméstica, tornou-se econômica e internacional. Não por acaso, apenas as figuras foram trocadas.
É notório que as manchetes bombásticas viraram notas de rodapé e vão aos poucos substituindo a indignação seletiva pelo conformismo do senso comum. Também o judiciário classista refreou seu repentino afã por justiça e voltou à habitual morosidade. Apenas os mecanismos de dominação e manipulação permanecem não só intocados como resultaram aperfeiçoados. E o objetivo é muito claro: consolidar a usurpação do poder antes que as massas percebam que foram enganadas.
Os fatos mostram que toda a movimentação que resultou no impeachment obedecia a um objetivo estratégico desenhado por forças à direita do espectro político que encontrou respaldo na oposição burguesa e sustentação nos oportunistas de plantão no Congresso Nacional, ávidos por tirar o seu da reta das investigações da Lava-Jato e de quebra amealhar mais poder e privilégios.
Acontece que o trabalho foi tão bem-feito que até agora tem inocente que não sabe de nada confundindo o assalto ao poder com a luta contra a corrupção, reproduzindo o discurso que levou à usurpação do poder e prontos a legitimar um golpe contra seus próprios direitos. Ainda não perceberam que a regressão social, política e cultural que se inicia tem como único objetivo pavimentar o caminho para a recomposição da exploração capitalista sob novos patamares travestida de recuperação econômica, lançando mão para isso da retirada de direitos trabalhistas e sociais e arrocho salarial, cretinamente classificados como flexibilização produtiva e ajuste fiscal. E as falácias não ficam apenas no campo do discurso. Propostas reacionárias e impopulares vêm sendo desenterradas e apresentadas como novidade pelos inescrupulosos de sempre, que aproveitam o ambiente favorável para fazer avançar seus interesses e os de seus financiadores.
A tudo isso assiste inerte a classe trabalhadora, claramente na defensiva e desmobilizada por longos anos de apassivamento levado a cabo pela conciliação e pelo reformismo que lhe retiraram seu traço fundamental: a capacidade de mobilização e luta. Ainda assim, só os trabalhadores nas ruas poderão obstar o caminho da usurpação. Quando os trabalhadores ligados à produção – aqueles que ainda não vieram às ruas – começarem a sentir na própria pele a dura realidade, haverão de despertar para seu verdadeiro papel que é o de agente da transformação social e não massa de manobra para interesses escusos.
Infelizmente, até aí, já se perdeu um tempo precioso e a usurpação tende a estar legitimada, mais pela omissão dos que poderiam resistir a ela do que por méritos próprios. Aliás, na usurpação não há mérito algum.